Minha tia Nininha sublimava a solteira, fazendo brotar o instinto materno nas florinhas e plantas que sua mão tocava. Parecia fada com vara de condão: plantou, pegou. Enchia ela de multicolores variações áridas áreas esturricadas: terras despidas, virginais, onde um sapo ou invasoras formigas se estabeleciam. Sobre elas despejava os fios d’água saídas pelos orifícios miúdos dos regadores. As flores sorriam alegres, criavam alma nova. Ou existe alguém duvidando da alma de flores? A fragrância delas é transcendente. As flores são vivas saídas de um suspiro de Deus sobre a Criação infinitamente derramada. Quem olhar com o espírito aberto à harmonia, certamente confundirá estrelas com flores prateadas pisca-piscantes.
Nem todos entendem florinês. Dialogar com as flores viventes em plurais recantos onde elas habitam, pequeninos jarros, entre rachões de mu...
Diálogo com as flores, um eterno aprendizado
Minha tia Nininha sublimava a solteira, fazendo brotar o instinto materno nas florinhas e plantas que sua mão tocava. Parecia fada com vara de condão: plantou, pegou. Enchia ela de multicolores variações áridas áreas esturricadas: terras despidas, virginais, onde um sapo ou invasoras formigas se estabeleciam. Sobre elas despejava os fios d’água saídas pelos orifícios miúdos dos regadores. As flores sorriam alegres, criavam alma nova. Ou existe alguém duvidando da alma de flores? A fragrância delas é transcendente. As flores são vivas saídas de um suspiro de Deus sobre a Criação infinitamente derramada. Quem olhar com o espírito aberto à harmonia, certamente confundirá estrelas com flores prateadas pisca-piscantes.
I A cor amarela tem cheiro de infância. Luz, vida, inocência. Antes de me estabelecer na vida adulta, pensava que essa cor viesse do ...
Rupturas e frações do tempo de maturação das ideias
A cidade de Serraria precisa homenagear a professora, poetisa e médica Eudésia Vieira, paraibana que se dedicou à emancipação feminina e ...
Eudésia Vieira, 40 anos depois
Há cem anos, na sua juventude, em nossa cidade, atuou junto aos necessitados do saber, como professora. Revelando-se, no seu tempo, uma mulher comprometida com as causas sociais.
O 4 de novembro, afinal, está sendo levado em conta. Não como feriado vinculado à data herdada do registro histórico de assentamento da p...
Para ver de perto
Desde a infância que o tinha como um deus, como os gregos. Mas esse era genuinamente brasileiro, mineiro de Boa Esperança, que nome bonito...
Nelson Freire, adoravelmente simples
O piano sempre me exerceu mágico fascínio. Quando brincava de esconde-esconde, lá pela dezena de anos, eu sumia da vista dos primos ao escutar, de longe, minha tia Iracema tocar. Um esconderijo óbvio, do qual todos já suspeitavam. E ali me punha em transe, mudo, estático, observando os dedos a deslizar pelas teclas daquela enorme e sinuosa caixa preta de onde saía sonoridade tão sublime.
Para todos estes e quem mais apreciava música à época na Paraíba, Nelson Freire era um deus. Mesmo considerando pianistas igualmente talentosos como Antônio Guedes Barbosa, Jacques Klein, João Carlos Martins, Cristina Ortiz, Arthur Moreira Lima,
Para minha tia e madrinha, Iracema Romero de Andrade, nem se fala. Admirava Nelson como quem contempla uma estrela no céu. Tinha todos os discos dele, escutava-os frequentemente e em sua singularíssima interpretação se inspirava. A partir de então, passei a conhecer melhor Nelson, admirando-o cada vez mais, à medida que o descobria na música concebida como poucos.
Não lembro qual foi a primeira vez que o vi, mas foi aqui em João Pessoa, cidade que sempre o cativou pela beleza histórica, praias bonitas e sobretudo pelo seleto e diferenciado público de música erudita. Assim, Nelson nos dava ocasionalmente o prazer de memoráveis recitais e concertos.
Na gestão do governador Tarcísio Burity, pontuada pelo tratamento ímpar dado à cultura, Nelson se fez mais presente. Foi a época dos Festivais Internacionais de Música, em que a Orquestra Sinfônica da Paraíba se destacou entre as melhores do país, senão a melhor, como confessou pessoalmente o maestro Eleazar de Carvalho em entrevista a Jô Soares, na TV Globo. E chegamos a ter o grande regente como titular de nossa Sinfônica. Tempos áureos!
Até masterclasses de piano com Nelson Freire a Paraíba teve, patrocinadas pela administração de Tarcísio Burity, um grande apaixonado por Música. Foi exatamente numa dessas aulas que conheci Nelson mais de perto, junto com João Bosco Padilha e Hermano Assis. A empatia foi instantânea. Parece que ele havia captado em nós aquela admiração dos tempos de infância.
Certa vez, após um dos concertos no cine-teatro Banguê, o convidamos para um jantar, com o maestro Eleazar de Carvalho, a cantora lírica Maria Lúcia Godoy, e o crítico de música do jornal Le Monde, Alain Lompech, em nossa casa. Foi uma noite encantadora, inclusive por ter convidado Alaurinda Padilha,
Como foi bom perceber que Nelson se sentiu em casa lá em casa. O que se comprovou posteriormente em outras vezes, menos formais, quando ele passou a vir estudar no nosso piano, preparando-se para os concertos seguintes.
Foi aí que descobrimos o seu lado mais humano, da simplicidade, da espontaneidade, da sensibilidade para as coisas da natureza, as flores, animais e outras poesias. E ele fez de nossa casa local de assídua e prazerosa convivência, fortalecendo a amizade e a admiração. Surpreendia-nos vê-lo preferir ensaiar em nosso piano, um Essenfelder de ¼ de cauda, tendo à disposição todo o aparato do Espaço Cultural, com seus dois novíssimos pianos austríacos de cauda inteira Bösendorfers, recentemente adquiridos pelo governo de Burity. Uma vez, ele nos contou que o governador lhe perguntou por que não estava indo ensaiar nos Bösendorfers? Ao que respondeu: “É porque na casa de Germano eu me esparramo pelo chão, pelo sofá…” E era assim mesmo. Descalço, de bermudas, passeava no jardim, entre uma música e outra, tomava um cafezinho, e se mostrava a pessoa naturalmente simples e amável que sempre foi.
Na residência do Alto do Joá, no Rio, tive o prazer de me hospedar e conhecê-lo na intimidade. Ver como ele tratava bem os partícipes de seu mundo, amigos, funcionários, animais. Tímido e reservado, podia até parecer sisudo, mas apenas na suposição, pois era amor em tudo o que fazia, dizia, tocava. Como era bom acordar e escutá-lo ao piano… Aproximava-me calado, sentava-me atrás, magnetizado por sua arte e pela maneira de dizer o que sentia na ponta dos dedos. Numa ocasião ele estava preparando o Concerto nº 2 de Brahms para abrir um Congresso Mundial de Cardiologia no Teatro Municipal. No início do primeiro movimento, após a exposição do tema, ele parou, olhou para mim e indagou:
Dada a simplicidade de Nelson, ousamos em levá-lo para Baía Formosa (RN), onde dormiu em colchonete de cama de cimento e comeu sardinha frita de Dona Raimunda, trazido por Dona Regina. Assim como para a Ribeira, às margens do rio Sanhauá, do outro lado da Praia de Jacaré, onde cochilou em rede, foi picado pelos mosquitos do mangue, e se deliciou com caranguejo no coco. A casa era de tia Iracema, rústica, simples, e, quando lhe dissemos que o convidaríamos, ela se espantou: “Vocês terão coragem de levar Nelson para a Ribeira?” — “Sim, titia, ele é encantadoramente simples”. E como foi bom!
Posteriormente nos encontramos em oportunidades de viagem, no seu apartamento do Marais, nos teatros que sempre o requisitavam. No Concertgebown de Amsterdam, na Sala Pleyel, na Phillarmonie de Paris, eram sempre noites glorificadas pelo regozijo com sua arte sem limites. Acompanhadas do orgulhoso prazer em ver o brilho de um brasileiro ser comprovado invariavelmente pela calorosa aclamação de entusiasmadas plateias internacionais. Não raro, jornais como o New York Times o apontavam entre os maiores pianistas da atualidade.
Contudo, havíamos de convir que Nelson não mais pertencia apenas ao Brasil. De mãos dadas com os grandes compositores, ele se espargiu pelo planeta levando a divina arte diretamente aos corações emocionados, sem nunca esquecer de incluir, sempre que possível, nossos preciosos autores brasileiros, nas gravações, recitais e concertos em público.
Sob a capacidade de dosar e superpor com maestria os planos sonoros, destacar as vozes e melodias na mais absoluta clareza e com a expressão máxima da Música, o piano de Nelson faz inveja a qualquer orquestra. Tudo o que o compositor pretendeu dizer na partitura, ele consegue captar além, redescobrindo, e, principalmente recriando de maneira ainda mais sublime a essência musical em nova tessitura, burilada com extraordinária sensibilidade. Sabia soar estrondosamente os acordes como uma catedral, tanto quanto fazer cintilar trinados e pingos de luz na sonoridade límpida como a superfície de um lago ao luar. Certamente Debussy gostaria de ter escutado por ele o seu Clair de Lune...
As paisagens sensoriais que Nelson consegue fazer brotar no imaginário do ouvinte, inebriadas da delicadeza com que ele reveste e invoca as melodias são fruto de percepção que só as almas iluminadas possuem. Ao sentir, talvez, que não pudesse mais ser o médium capaz de nos transmiti-las, ele se desencantou do mundo terreno.
Nem sempre há forças que façam do artista um herói maior do que sua arte, do que si próprio. Nem sempre ele encontra outra forma de superar e de se expressar em idioma não mais acessível. É então que a fatalidade se sobrepõe às razões imponderáveis do existir e do não existir. Mesmo porque artistas que se doam de forma tão dedicada e altruísta como Nelson Freire sempre estarão a colher o bem que fizeram, a beleza que semearam, a felicidade que distribuíram, sobretudo nos momentos em que a vida e o mundo nos afligem.
Em sua música, eterna e vibrante, estará imortalizada toda uma vida dedicada à arte, tesouro que o acompanhará para sempre nas esferas espirituais em que ele ouvirá música ainda mais divina do que a melodia que Gluck imaginou Orfeu escutar, ao reencontrar sua amada Eurídice no Hades, e que Nelson transpõe ao piano como ninguém.
A luz que emerge da “Sonata quasi una fantasia”, de Beethoven, estará a brilhar em todas as luas que iluminarem mares e lagos, deste e de outros mundos, onde a música mais doce é a do bem que se deixa no rastro dos caminhos trilhados.
Nelson é luz que se desloca a brilhar em outros céus. Um espírito que colherá o bem que plantou, as emoções que refinou em nós, tornando-nos melhores, elevando-nos os sentimentos, e pelo legado diante do qual a humanidade lhe será eternamente grata.
Obrigado, Nelson!
Se antes já desconfiava, hoje tenho certeza: a cidade de Princesa Isabel, na região dos Cariris Velhos, é a Macondo da Paraíba. Lá, a saga...
Três princesenses
Àquela altura dos acontecimentos, o insurrecto Coronel José Pereira sequer fazia ideia de que estava fornecendo os ingredientes necessários para um livro que viria a ser escrito muitos anos depois: “O Dia dos cachorros” (Editora Bagaço, Recife, 2005),
O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que não existe. A essa prática, dá-se o nome de superinterpretação. Superinte...
A nota
Na Paraíba tudo chega atrasado, tudo demora. Enquanto nos outros lugares já estão com as castanhas assadas, aqui ainda estamos tirando o c...
Finalmente, o museu
Alcatraz é rocha isolada em meio às águas geladas da baía de San Francisco. Cercada por ondas de jade, ela surge aos meus olhos com um cor...
Alcatraz
Quanta presunção! De repente, o pai inventa de fazer uma espécie de “decálogo” para as quatro filhas. Os pais deveriam compreender que têm...
Coisa de pai
Ao concluir a leitura do livro “⅙ de laranjas mecânicas, bananas de dinamite”, do poeta, dramturgo e artista plástico Waldemar José Solha...
A essência do belo
É um livro solto e gostoso de ler. O autor não deixa dúvidas de que leu e conhece bem os clássicos, a exemplo de Camões, Virgílio, Goethe, e que está por dentro de música, cinema, filosofia, teatro, arquitetura, literatura, e consegue trazer a história da humanidade para os dias atuais, unificando-a em um poema.
Não tenho o dom da escrita. Se tivesse, eu escreveria um ensaio sobre ele. Entretanto, considero que quaisquer palavras limitariam o que eu teria a dizer sobre este livro-poema.
Quando menciono a certeza de que ele leu Virgílio, Camões (ah, os "mares nunca dantes navegados", é porque, através dos versos, o leitor atento sente que há grandes obras por trás de seu texto. Obras dos clássicos que, em torno delas, ele traça inteligentes paralelos com rimas leves, objetivas, simplificando-as em um magnífico “bolo literário”. Coisa de quem sabe mesmo do que está falando.
Nas artes plásticas, assunto que domina, é que ele dá um banho de cultura e sensibilidade, passeando dos jardins de Manet (Le Déjeuner sur l'herbe), à fotografia de Margaret Bourke-White e à arquitetura de Dubai, e, quando se refere, por exemplo, de maneira lúdica, à "transparência dos tecidos" na Vitória de Samotrácia.
Parabéns, Solha! Você transpira erudição.
A História tem ética e estética, poética frenética da Bíblia , Ilíada, do itálico De Bello Gallico , d´ Os Sertões , Camões ...
A História
A Paraíba, que tem uma considerável tradição literária, quando se trata de ficção narrativa, ganha novo destaque nacional, através da roma...
Aglaia, impenetrável solidão
Duas de suas coletâneas, A Menina de Cipango e Os Campos Noturnos do Coração receberam, respectivamente, o Prêmio José Vieira de Melo, da Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba, e o Prêmio Novos Autores, da UFPB.
Quero repetir e reiterar, agora, o entusiasmo de minha saudação a seu primeiro romance:
Despertando silêncios abismais com a música das palavras, a romancista recupera para o grande amor sua verdade essencial, que transcende as convenções e aparências para encontrar, na inteireza e na densidade de ser, a sua eternidade. Um romance ousado e verdadeiro, que veio para ficar na história.
Em 2016, Marilia encanta outra vez seus leitores, com Liturgia do Fim. Um romance de suprema dor, a vida transfigurada num afogar-se, num morrer interminável. A palavra, em absoluto poder de criação,
O tempo do romance corresponde à volta de Inácio que, desterrado, sentira-se por todos os anos “em lugar nenhum”. Esse retorno patético de um “estrangeiro”, que deixa o vazio em busca de Perdição, constitui o eixo condutor da narrativa. Na partida para a obscura viagem é que o leitor vai encontrar o protagonista narrador, seguindo sem saber por qual razão, expurgando a cruz das palavras “desde sempre represadas” e, há mais de três décadas, “amoladas na pedra da memória”. Palavras-lâminas que, do tempo estilhaçado, vão recortando os silêncios, escavando as lacunas, revolvendo os mistérios, exumando os segredos, retalhando a dor. Um modo de narrar que qualifica e consagra a romancista. Ela escolhe Inácio na situação-limite que se equipara à última estação de uma “via crucis”, para tingir as palavras com todos os tons e matizes da agonia.
Quando Marília terminou O Pássaro Secreto, seu terceiro romance, e me segredou a intenção de concorrer à 5º edição do Prêmio Kindle, 2021, eu lhe respondi que, se o julgamento fosse sério, ela teria condição de vencer. E fiz questão de justificar essa previsão, lembrando-lhe as qualidades raras que se acumulam, em sua experiência criadora.
As revências que alimentam seu imaginário; o poder de conduzir seus temas e personagens, tecendo a verdade ficcional com sutileza e ousadia;
Marília concorreu com 2.400 (dois mil e quatrocentos) candidatos inscritos. E O Pássaro Secreto, julgado por jornalistas, escritores e editores de indiscutível competência, trouxe para o Nordeste, numa conquista pioneira, o Prêmio Kindle de Literatura. Nossa romancista enche de orgulho a Paraíba e o Brasil.
O Pássaro Secreto é um romance de dor e dilaceramento. O conflito central se estrutura a partir de traços de personalidade da jovem protagonista, incapaz de suportar o acúmulo de perdas impostas pela vida. Depois de alguns desatinos, resta-lhe uma sobrevida de solidão, sem nenhuma esperança.
Os recursos de expressão, tecidos pela precisão da linguagem pela inventividade do processo narrativo, sedimentam a unidade inseparável entre forma e conteúdo, que prendem e encantam o leitor.
Aglaia é a narradora de sua história de amor e desatino. Amor “azul-escuro, quase preto, o amor feroz”, conforme verbaliza em síntese conclusiva.
Revela-se a grande competência da romancista nessa escolha de dar voz a uma subjetividade desafiadora, extremamente complexa, que nem os psiquiatras fizeram aflorar em longos anos de consultório e indagações.
Foi assim com Duína, em sua carta-testamento. Com Inácio, que se consome bem mais pela culpa de ter abandonado Ifigênia, e não, de ter amado. E, agora, com Aglaia, que os irmãos e Dermian classificaram de anormal, aprendiz de marginal e monstro. Rótulos traduzidos e sintetizados por Dr. Xisto, no internato da Clínica, através da impactante expressão, “perturbações psicossomáticas”. Duas palavras que, elucidadas, levaram a personagem a exclamar:
Aglaia, inteligente, perspicaz, culta, sensível, capaz de enxergar com olhar crítico as reações a seu respeito, incluindo os procedimentos médicos; e, com suficiente lucidez, para refletir sobre a tragédia da própria existência. “A vida me empurrou para a escuridão ou eu nasci com a escuridão dentro de mim?”
Aglaia se universaliza como representação metafórica da condição humana, no enfrentamento da suprema dor de existir em impenetrável solidão Chama a atenção do leitor, a forma como se apresentam os capítulos do romance, à primeira vista, diferenciados pela característica dos tipos gráficos em que estão impressos.
Os ímpares se destacam, no itálico, e fazem pensar em anotações de um diário íntimo que se integrassem à narrativa. Neles, o tom é de monólogo interior, de fluxo da consciência.
O espaço desses capítulos é o hospital, para onde Aglaia foi socorrida, depois de violentada pelo “garoto de olhos de fogo”. Aglaia, “uma ferida aberta”.
Metáfora retomada e ampliada no fecho do capitulo 13, como reflexão consciente da protagonista. “Feridas abertas não falam. Feridas abertas sagram”.
Estabelecendo as conexões, o leitor é levado a perceber que este sangrar escorre, lentamente, na sensação de morte que traz, para Aglaia, o mundo dissolvido em borrões; no pesadelo que a faz despertar e estremecer, ante a realidade das recentes lembranças; na escuridão em que desaba a personagem, açoitada pela dor e pelo frio; na silenciosa resposta das lágrimas; no desengano das conclusões sobre o amor; na mágoa, sem remédio, de recordar “a vida que ficou para trás”.
Um modo de narrar que transcende a técnica ou o processo narrativo e se converte em sentido. A linguagem romanesca, incluindo recursos poéticos de elaboração. O romance de Marília é assim. Instigante. Em cada aspecto observado, um desafio de leitura. Por isso, termino essa apresentação com uma proposta.
A esperança é um sentimento que transcende o ser humano, e também se manifesta entre os animais. É a sensação de possível realização de qu...
Juízo Final
É um nobre sentimento. Está representado em todas as culturas, sob a forma de estátuas, quadros, ícones. É tão nobre que se tornou antropônimo dado a muitas das nossas meninas ao nascerem.
Aos doze, treze anos, vive-se alheio à celeridade com que a mão invisível do tempo arranca folhinhas de calendário e as lança para longe. ...
Nefertiti
E eis aqui uma delas: outra vez é sábado. A hora é próxima ao meio-dia, e a Pick-Up Rural freia rente à calçada. Pela porta da frente quem desce é Dondonzinha Dantas. O motorista abre então uma porta mais recuada e por ela sai uma menina que irá servir de companhia à idosa senhora. Pelo outro lado do carro, desce outra mulher, na casa dos 30 anos. São mulheres Dantas. Gente rica.
Euclides da Cunha não faz concessões. Ele é erudito e quem quiser se esforce e se desdobre para acompanhá-lo. Não adiante reclamar. Estamo...
Euclides da Cunha, culto e erudito
Nossa escola não tem preparado nossos alunos nem para a leitura culta. Para a leitura erudita menos ainda, diante do esforço incomum que a erudição exige. Há, com certeza, autores mais difíceis de se ler do que outros e, diga-se de passagem,
O entrave para a leitura desses dois escritores está não na falta de hábito de leitura, mas na falta do hábito de ler, reler e procurar enfiar-se nos meandros de sua escrita. São autores difíceis, não são insípidos. Eles têm o que dar ao leitor que busca mergulhar no universo da sua escrita densa. Como se diz comumente, eles têm sustança. Sim, são substancialmente significativos e para que cheguemos à sua significação, temos de nos aprofundar nos seus textos e tentar ver com mais clareza o que existe por trás de uma forma linguística, que parece nos repelir. Insistamos e ela nos atrairá, como o passarinho hipnotizado pela cobra. No entanto, quem está disposto a fazer leitura e, sobretudo, releituras de obras como Grande sertão: veredas e Os sertões? São as releituras que nos permitem passar a couraça da erudição e mergulhar na grandeza do texto.
Com relação a Euclides da Cunha, os termos eruditos se sucedem na sua escrita, com muitos termos latinos; outras referências eruditas são incontáveis tanto do ponto de vista científico, quanto do puramente literário. A guerra de Canudos, por exemplo, é sempre comparada a alguma guerra mítica ou real, em que se faz referência a lutas contra o elemento exógeno, como a guerra de Troia – lembremos que Canudos é uma “Troia de taipa dos jagunços” (“O Homem”, Capítulo II, p. 144) –, ou a lutas fratricidas, como a mítica luta entre os irmãos Polínices e Etéocles, em Tebas, daí a referência à Tebaida de Estácio, ou ainda à Vendeia, resistência monárquica e católica contra a Revolução Francesa, em 1793 (isto será assunto mais detalhado de outro ensaio), magistralmente ficcionada por Victor Hugo, no romance Quatre-vingt-treize (93) – “E Canudos era a Vendeia...”
O sertão, por sua vez, além de impérvio e terra ignota, nunca tem um perfil ou uma face, mas um facies, termo latino recorrente no texto; os cumes das montanhas e das escarpas são fastígios; os acontecimentos são subitâneos; as copas das árvores, os ramos e a vegetação raramente são verdes, mas virentes; os areais são exsicados; as águas ganglionadas; a flora decídua; o sertão adusto; os ciclos adurentes. Quando o traçado geográfico das serras separa o Vaza-Barris e o Itapicuru, dá-se o divortium aquarum; o sertão é desertus australis, por sua posição ao sul do hemisfério, e a sua flora extravagante é silva horrida; as areias são incedidas; os minúsculos ciclones que atingem o sertão exacerbam a sensação do calor, sentindo-se, então, “maior a exsicação do ambiente adusto”; o verão traz sempre um paroxismo estival; as ares são urentes; os cajueiros anões são chamados pelo seu nome científico de Anacardium humile; o sertão é uma selva desfolhada pelo fogo, mas o escritor prefere dizê-la silva aestu aphylla; os estios são flamívomos... E nós só nos ativemos, de um modo aleatório e não exaustivo, ao léxico mais evidente das 50 páginas que enfeixam a primeira parte, “A Terra”. Há mais 600 pela frente...
A quem conhece a Ilíada nos seus detalhes, pois as releituras ajudam a fixação na memória e ampliam o horizonte de expectativa, não é difícil de reconhecer nos textos abaixo, a saga de Aquiles retornando à guerra, no Canto XIX, e fazendo das águas do Simoente, um dos rios que banha Troia, um curso vermelho e impedido de desaguar no Egeu, pelo sangue e pelos corpos dos troianos por ele mortos (Canto XXI), o que leva o rio a recriminar o herói e, depois, levantar-se contra ele, querendo afogá-lo (versos 211-221; 240 e ss.):
Se alguém acha que é só coincidência, dê uma olhada no Catálogo dos Jagunços (“O Homem”, Capítulo V, p. 242-244), baseado no Catálogo dos Heróis e das Naus, do Canto II da Ilíada. Ideia que será retomada também por Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas.
Como entender o epíteto e genial oxímoro a definir o sertanejo, como “Hércules-Quasímodo” (“O Homem”, Capítulo III, p. 157)? Por que o fracasso da terceira expedição equipara “os batalhões de Moreira César”
Por que a insistência nos meandros do Vaza-Barris (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo III, p. 450; Capítulo V, p. 493)?
Imagine-se o que é parar a leitura e buscar compreender minudentemente o que se encontra no texto. Quanto horas dedicadas a este labor, que alongaria a leitura e a tornaria mais pesada! Paradoxalmente, são as horas dedicadas à compreensão de um texto erudito, como este de Euclides da Cunha, que nos darão o prazer de sua leitura, porque vamos aprendendo aos poucos a refinar o paladar e a degustar cada palavra, cada expressão, cada frase, reverberando em nossa recepção, a ponto de não mais a sentirmos como uma couraça impenetrável. Não é suficiente saber ler, é necessário aprender a ler com paciência e persistência, buscar os significados escoimados do vulgo da linguagem – atenção!
Este exercício é essencial para que possamos fruir passagens belíssimas, como aquela em que “as primeiras bátegas” das chuvas de inverno, não chegam a tocar a terra seca e adusta, evaporando-se, mas a persistência e a frequência com que caem concentram-na “tumultuariamente em ribeirões correntosos”, que se adensam “em rios barrentos”, arrancando na força da correnteza “os esgalhos das árvores”, que rolam “no mesmo caos de águas revoltas e escuras” (“A Terra”, Capítulo IV, p. 78-79). Por sinal, excelente metáfora, para a aquisição do hábito da leitura pela persistência.
Em meio a uma narrativa desafiadora, há inúmeros encantos aguardando o leitor que se dispõe a enfrentá-la. O trecho a seguir é uma página digna de uma antologia – difícil é dizer que página não é... –, pela riqueza de sua construção estilística:
No texto, se mesclam a ironia, o símile, a metonímia, antecipadora da morte, ao mesmo tempo que revela o paradoxo entre vida e morte, de uma flora assustadora, que ressurge dos trapos dos soldados mortos... É na persistência da leitura e na busca de suas significações em segundo grau que passaremos a fruir por completo textos como o da ação maléfica do homem sobre a terra, de que desponta uma das marcas da estilística de Euclides da Cunha, a gradação:
Sem a ajuda da erudição não é possível ler Euclides da Cunha, como é impossível ler Guimarães Rosa ou Augusto dos Anjos. Ou todos podem ser lidos na sua horizontalidade, mas o resultado será, inevitavelmente, a inania verba, o lugar-comum dos clichês que parecem dizer algo inteligente. Só parecem.