Foi Pedro quem gritou por cima do ombro da namorada: “Canta Esmoque Guetes Ior Ai”. E Zezinho da Serventia, obediente, atacou, depois da in...

Meu primeiro baile

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Foi Pedro quem gritou por cima do ombro da namorada: “Canta Esmoque Guetes Ior Ai”. E Zezinho da Serventia, obediente, atacou, depois da introdução da clarineta de Zé Borges: “Dei, ei, esque rau ai niu”...

Sujeitinho metido a besta, aquele Pedro. Passou três meses no Rio de Janeiro e voltou acariocado, cheio de tchis e dgis.

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Antes da viagem, enchia os ouvidos do outro com pedidos de Anísio Silva, Cauby, Roberto Luna, ou Trio Irakitan. E olha que aqueles três moços que o Rio Grande do Norte pôs nos palcos e salões do mundo se arriscavam, quando muito, a traçar um espanholzinho.

Até o embarque, Pedro só queria as músicas deles em português. “Gosto de sentir a letra”, justificava. Foram as noites do Rio que o fizeram mudar. Não trouxe de lá um dente de ouro, porém não mais lhe faltou à cintura o ray-ban esverdeado nem à mão um radinho de pilhas novo em folha.

Tirar aqueles óculos da caixinha de couro presa ao cinto e levá-los à testa era para si um momento de glória. O outro era pedir, nos bailes do Pavilhão, músicas em inglês a Zezinho da Serventia. A namorada, lá, toda orgulhosa, e ele por cima dela a solicitar The Platters, Nat King Cole e Paul Anka.




Zezinho, é bom que se diga, tomou gosto pela coisa. “Crooner” do Conjunto de Zé Borges, punha o pandeiro na surdina e balbuciava canções românticas, com voz melosa, aveludada. “Flaime tudemun”, sussurrou ao microfone, muitas vezes, com inflexão capaz de matar de inveja Frank Sinatra.

Eu em nada gostava daquilo pois me tirava a oportunidade de uns passos de bolero, gratíssimo a Maria cujos pés saíam de uma dança comigo em petição de miséria.


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Falo da Maria, a das Dores, com quem minha mãe contava nos tratos da cozinha. Dois para lá, dois para cá e a coisa até progredia entre um tropeço e outro. A outra Maria, a do Carmo, filha da primeira e como eu mal ingressa na adolescência, corria deste arremedo de dançarino como o diabo da cruz.

O jeito, então, era eu me arrumar com a paciência de uma professora que possuía, quando menos, o dobro da minha idade e de quem a viuvez nunca tirou o gosto pela vida.

Ocorre-me, agora, que seus cuidados com meus pés assemelhavam-se aos modos como dona Dapaz corrigia minha mão direita no rabisco das primeiras letras. Devo, portanto, a essas duas senhoras, sem exagero nenhum, zelos que vão dos pés à cabeça.

E lá vinha Pedro com seus pedidos. Quem também disso não gostava era Assis, portador do cavaquinho. O pouco que sei de violão me permite perceber, hoje em dia, o suplício de alguém obrigado a acompanhar baladas americanas com paleta e quatro cordas, ou seja, com instrumento que tem a cara de samba e de chorinho. E o pobre do Assis já fazia grandes concessões aos boleros.

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Esses bailes aconteciam nas noites do sábado em um Pavilhão que a estupidez de um prefeito derrubou na cidadezinha onde quase nasci. Ali cheguei aos seis meses de vida. Aos 15 anos, perseguia boleros e pares femininos da minha idade depois de bons treinos com Maria.

Não apresentava título pomposo o grupo ao som do qual dançávamos. E nenhum de seus integrantes tinha a música como profissão. A família de Zé Borges, o clarinetista, alimentava-se do que ele plantava e colhia em dois hectares. Assis, dono do cavaquinho, era funileiro quando não fazia bicos.

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Manoel enxergava muito bem os pratos e tambores de sua bateria. Embora o discreto estrabismo lhe rendera algum apelido. O hotelzinho tocado com a esposa garantia, este sim, o sustento familiar. Outro Pedro, seu cunhado, funcionário público, deixava a Capital em cada manhã de sábado com o violão. E, à noite, a festa estava garantida.

Ah, sim... Zezinho, a voz de veludo, era assistente de forno na padaria do meu pai, o que me permitiu a chance da pergunta: “Onde você aprendeu inglês?”. Resposta: “Com Pedro, no raido dele”.

Passo hoje por ali, de vez em quando, com dor no peito. E sem entender como filhos e netos dos que sobreviveram, ou não, ao tempo e à saudade não exigem aquele Pavilhão de volta, tal como era. Exatamente, assim: cobertura em quatro águas, salão amplo, guarda-peito em duas das quatro fachadas, entradas em arco, um ambiente para bar e outro a serviço do carteado com mesa redonda de pano verde, onde mulher e menino não entravam. Havia, ainda, dois banheiros com vasos e pias.

A reinauguração, caso venha a ser feita, deve conter pouco discurso e muita festa. Deve ter dança com orquestra, pares “cheek to cheek”, foguetório e placa de bronze na qual se inscrevam todos aqueles nomes. Menos, é claro, o de Pedro.


Frutuoso Chaves é jornalista

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  1. Delicia de conto! É uma "música" para os meus olhos. E ainda mais animado pelas duas músicas que o acompanham...!
    Muito bom, Frutuoso!

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  2. Mais um show, Equipe do Ambiente de Leitura!
    Parabens!

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