Por pouco não passou em branco o centenário de Antônio Maria, um dos maiores cronistas brasileiros do século XX. Sem falar no composi...

Cem anos do genial Antônio Maria

Por pouco não passou em branco o centenário de Antônio Maria, um dos maiores cronistas brasileiros do século XX. Sem falar no compositor inspirado de canções imortais como Menino Grande e Ninguém me ama. Sim, ele mesmo, provavelmente desconhecido da moçada atual, geralmente ainda ignorante das boas coisas da vida, mas não dos que já adentraram a faixa dos sessenta com o mínimo de conhecimento da cultura nacional mais ou menos recente.

Nascido no Recife em 17 de março de 1921, em família usineira posteriormente falida, Maria morreu no Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1964, em plena madrugada, numa calçada de Copacabana, de infarto fulminante. Tinha 43 anos, um nome nacional e, aparentemente, tudo pela frente.

43 anos. Ninguém merece morrer tão moço. Muito menos aqueles e aquelas cujo talento extraordinário tinha ainda tanto para dar aos semelhantes. Fernando Pessoa disse que Deus ama os que morrem cedo. Fico pensando. E achando que o criador não seria e não é egoísta para fazer coisas assim, como levar precocemente para junto de si criaturas com tanta vida para viver. Mas o fato é que essas coisas acontecem e a gente fica sem entender.

43 anos cronológicos, mas no mínimo o dobro de ricas vivências. Assim foi, felizmente, com o gordo Antônio Maria de tantas experiências, tantas realizações, tantos amores. Se não fosse clichê, diria que ele parecia adivinhar que partiria cedo, tratando de produzir e aproveitar o máximo possível no curto tempo que lhe foi destinado. Escreveu fartamente em diversos jornais e revistas, compôs canções, dirigiu espetáculos e fruiu com gosto a melhor boemia carioca da época.

Era um ser notívago. Viveu principalmente à noite, daí ter morrido na rua, de madrugada, provavelmente em pleno trânsito de uma boate para outra. Já no auge profissional, dirigia um Cadillac preto, no qual levava sempre sua máquina de escrever, garantia de suas crônicas diárias. Boêmio autêntico, muitas noites dormia em hotéis, normalmente acompanhado de uma conquista recente, na avidez dos amantes sôfregos que não podem esperar pelo dia seguinte. De tanto frequentar a noite, tornou-se um de seus personagens, um de seus símbolos.

Mas não se pense que suas crônicas restringiam-se aos assuntos notívagos e boêmios. Não. Como bem observa Guilherme Tauil, organizador da mais recente antologia de seus textos, Vento vadio (Editora todavia, 2021), “Um dos trunfos da crônica de Maria, portanto, é superar a boate. Interessa-se pelas ruas da cidade e pelas relações pessoais, dos affaires da alta sociedade aos trabalhadores. Enquanto outros cronistas noturnos tomavam a noite como ponto de chegada, Maria captava o todo: educava-se na madrugada, mas batia o ponto de manhã. Formulou a dimensão noturna como poética, não como assunto. Por isso estava livre para levar sua obra por outros caminhos”.

Desorganizado, deliberadamente ou não, Antônio Maria, em vida, não cuidou de reunir em livro a sua produção. Mas imaginou o título de uma futura publicação que não chegou a fazer: Vento vadio. Agora, quase sessenta anos depois de sua morte, essa obra chega finalmente em nossas mãos, através do trabalho de pesquisa de Guilherme Tauil, pela editora citada. São 185 textos primorosos, a maioria inédita em livro, um excelente presente de Natal e principalmente um oportuno resgate de um de nossos maiores cronistas de todos os tempos.

Maria era gordo, não era bonito, mas sua conversa inteligente cativava gregas e troianas. Por isso foi um improvável e exitoso Dom Juan, provando que, para mulheres igualmente inteligentes, a aparência não é tudo. Com sua lábia, conquistou a então bela e cortejada Danuza Leão, sua derradeira paixão. Isso ocorreu em meados de 1961. Ela tinha 27 aninhos, ele, quase quarenta. Daí até março de 1964, quando Danuza o deixou, ele manerou a boemia para dedicar-se ao seu amor. De março a outubro desse ano, quando morreu provavelmente disso, Maria viveu o desespero dos amantes abandonados.

Por um dos mistérios da vida, a última palavra da crônica publicada no dia seguinte ao da morte do cronista, provavelmente o derradeiro texto escrito por ele, é “solidão”. E essa palavra diz tudo sobre Antônio Maria, resume e retrata sua alma atormentada e sua vida inquieta, de busca incessante de uma paz que nunca achou.

Essa curta e genuína vida de poeta está fielmente exposta nas crônicas deliciosas de Vento vadio. É uma das leituras desse final de 2021 que recomendo seriamente aos apreciadores do gênero.


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