1992: eu disse à Ione que estava na hora de visitar meu pai: - Está com 87. E o encontrei de cama. Não aceitou que o levasse a um mé...

Meu enigmático pai

1992:
eu disse à Ione que estava na hora de visitar meu pai:

- Está com 87.

E o encontrei de cama. Não aceitou que o levasse a um médico, nem que lhe trouxesse um.
Morreria uma semana depois.
Mas conversamos bastante, naquela derradeira ocasião. Em certo momento, pediu-me que lesse em voz alta, para ele, o poema “Se”, o “If” de Rudyard Kipling, que havia na tradução de Guilherme de Almeida, ... do Tesouro da Juventude – coleção que fora minha e deixara para ele.

Li:

- “(...) Se és capaz de arriscar numa única parada Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, Resignado, tornar ao ponto de partida, (...) Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo E o que mais - tu serás um homem, ó meu filho!”



Meu enigmático pai. Mal falava comigo até meus 18 anos, até o dia em que chegou da missa, num domingo de manhã e me deu um esporro pelo seu rádio transmitindo a Sinfonia 40, de Mozart, segundo ele com o som nas alturas:
- Puta que la merda!!!: de lá da esquina eu já estava ouvindo esse escândalo!



Desliguei o Pilot e fui ao meu quarto. Encostei a porta e liguei o aparelho ao lado de minha cama. No que as válvulas se aqueciam e eu prosseguia Mozart de memória, ouvi a discussão dele com minha mãe.

- Nato, ele só tem o domingo pra ouvir as coisas dele...
- Que vá namorar, como o irmão!



Na única visita que meu pai me fez, aqui na Paraíba, caminhávamos no calçadão de Tambaú, Ione com minha mãe atrás, nós dois na frente, eu lhe disse:

- Pai, estamos os dois grisalhos, numa oportunidade rara, e queria que me tirasse uma dúvida: até o dia em que houve aquela coisa o rádio, lá em casa, o senhor mal falava comigo. Tudo era o Ney. Nunca me esqueci do dia em que eu lhe trouxe o boletim do último ano do primário, para que o senhor assinasse, e o senhor me disse, indiferente às notas 10 em tudo: "Deveria ter sido reprovado, pra ver se aprendia alguma coisa!" Essa .... diferença comigo, ... é impressão minha, ou acontecia, mesmo?

- Acontecia.
- Por que?
- É que um ano depois que me casei, nasceu a Wandyr. Mais um ano, a Wilma. Só cinco anos depois, veio o Ney. Pronto: eu tinha o reizinho lá em casa. Aí passaram-se mais cinco anos e, em pleno miserê da guerra, lá vem você. Não foi bem recebido.



A sinfonia 40 (Mozart). Quando chegou ao meu rádio ruim, veio falhando, e - nessas intermitências - ouvi o velho me esculhambando, me esculhambando.

Até que não aguentei e dei um murro no aparelho, que silenciou de vez, meu punho fechado em suas entranhas. O velho entrou:

- Que foi isso?
- Quebrei essa porcaria! Mas não se preocupe, pago o prejuízo!

E saí do quarto, cruzei a sala, saí da casa, revoltado, agitado, fui sentar-me sob um dos ciprestes da casa vizinha, em surdo desespero. Precisava viver longe dali, o que só iria acontecer três anos depois, quando passaria no concurso do Banco do Brasil e viria para o sertão paraibano. Aí, com algum tempo desse... getsêmani, lá vem seu Fortunato Solha. Baixando o tom, falou-me das bobagens da vida e , sempre muito católico, lembrou São Francisco dormindo ao lado de um crânio, porque "pulvis es et in pulverem reverteris" , e conversou, conversou - de modo que, a partir dali, nosso relacionamento passou a ser ... normal.



Foram anos, aqui e ali eu me perguntando a razão do pedido daquela leitura de Kipling. Até que me lembrei de que em 69 eu perdera tudo e mais alguma coisa com o filme O Salário da Morte e ele... me emprestara três mil cruzeiros para que eu pudesse pagar uma promissória no Banco Industrial de Campina Grande. Acompanhou por cartas aquele período de grande apertura que só terminou quando, em 74, ganhei o Prêmio Fernando Chinaglia com meu primeiro romance, "Israel Rêmora".

- “(...) Se és capaz de arriscar numa única parada Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, Resignado, tornar ao ponto de partida; (...) Tua é a terra com tudo o que existe no mundo E o que mais -- tu serás um homem, ó meu filho!"

Fora um elogio.



Outro enigma:

Quando voltei a Sorocaba, na semana seguinte à de Kipling, para o enterro de seu Fortunato, passei, na volta, pelo Museu de Arte de São Paulo - o MASP - e, quando me vi ante o "São Francisco com os estigmas", de El Greco, senti - literalmente - um soco no estômago. "Por que?" - me perguntei, já que não me parecia a melhor obra dali. E a causa, descobri ... anos depois de muito remoer aquilo: o crânio ante o qual o santo estava em êxtase e aquele "et in pulverem reverteris".

(Trecho da AUTO B/I/O GRAFIA em que estou trabalhando. Na ilustração, retrato a lápis para o qual meu pai posou para mim, um pouco antes de eu vir para a Paraíba)

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. São dores pessoais, íntimas.
    Não há como classificá-las.
    Muito menos, esquecê-las.

    ResponderExcluir

leia também