A palavra do dia é moderação. Na música Positivismo , o grande Noel Rosa constrói uma belíssima e inusitada metáfora, como um conselh...

Moderação

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A palavra do dia é moderação. Na música Positivismo, o grande Noel Rosa constrói uma belíssima e inusitada metáfora, como um conselho à amada que despreza o seu amante e o deixa:

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Vai, orgulhosa, querida Mas aceita esta lição: No câmbio incerto da vida A libra sempre é o coração.
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Os poetas, os verdadeiros, aqueles oriundos e constituídos da melhor cepa, podem tudo, e a metáfora da libra como o fiel da balança, aliada à outra que trata a instabilidade natural da vida como “câmbio incerto da vida” é simplesmente genial. Não esqueçamos que durante muito tempo e ainda em vigor na Inglaterra, Reino Unido e Grã-Bretanha, a libra é simultaneamente uma medida de peso e um valor monetário. Assim, o poeta dá uma pequena lição na instabilidade da amada, advertindo que o equilíbrio e maior valor que podemos ter reside no amor
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e, no caso, na sua representação metonímica, o coração.

De Noel, passamos para o latim no seu sintetismo, dizendo muito com poucas palavras – in medio virtus. Embora a expressão latina queira dizer apenas o que ali se encontra, que o meio, o equilíbrio, a moderação é onde se encontra a virtude do ser humano, há os que distorcem o significado entendendo a sentença como uma definição de mediocridade, como se a mediania não fosse um perfil geral, como se a expressão significasse apenas a inferioridade. Todos somos medianos. Acima disso, os gênios.

A mediania nos ensina a viver e dar outros voos de vez em quando, mas sempre voltando para pôr os pés na terra, onde está a nossa segurança. Mediania é um outro nome para a moderação que todos devemos ter, o que poderíamos também chamar de sobriedade.

Vamos para a língua grega, com a sua precisão no emprego dos seus termos. Para o homem grego, desde os tempos arcaicos, o que equivale dizer tempos homéricos, o diafragma era a sede do saber, do raciocínio, da reflexão.
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Ainda não se conhecia a fisiologia do cérebro, para lhe atribuir a capacidade do pensamento. O cérebro era apenas o que estava dentro da cabeça, o encéfalo (ἐγκέφαλος). Toda atividade nobre de amadurecimento espiritual, no sentido de exercitar-se para a moderação, para a continência, estava atribuída ao diafragma. E há uma explicação lógica para isto. O diafragma é um grande músculo peitoral, cobrindo todo o esterno, que movimenta a respiração. Quando aprendemos a respirar, passamos a moderar os nossos impulsos, afastando-nos de tomar medidas das quais iríamos, certamente, nos arrepender. Não é à toa que, quando alguém está tendo um ataque de pânico ou de ansiedade, pede-se que ela respire dentro de um saco de papel, de modo a poder controlar-se.

A palavra diafragma, em grego, é frén (φρῆν), cuja raiz se encontra em um dos mais caros termos para Platão. O termo também é caro no âmbito da tragédia grega, para o entendimento do erro transcendental que o homem comete, cavando sob os próprios pés um grande abismo, do qual, dificilmente,
A moderação é exercício diário, que nos dá mais tempo para a reflexão, para que nos dobremos sobre o nosso pensamento, antes de pronunciá-lo.
ele conseguirá escapar, não por culpa dos outros, mas das suas carentes de reflexão: sōfrosyne (σωφροσύνη). Em suma, quando nos falta a reflexão necessária, para agirmos com moderação, pagamos pelos nossos erros, e não adianta culpar os outros.

Ao que parece, de uns anos para cá, esquecemos de cultivar a moderação, sendo o destempero a nota corrente, com as pessoas se exaltando e fazendo de qualquer atitude do outro um motivo para um digladiar-se sem fim.

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Finalizemos com a toga romana. Otávio César Augusto, cultor dos velhos costumes, tomados como bons e como modelo de moralidade, os mores maiorum, reintroduziu durante o seu governo, longo governo de 58 anos (44 a. C. – 14 d. C.), o uso da toga entre os patrícios, de um modo geral. O objetivo? O exercício diário da moderação, que começa através da diminuição da gesticulação. Como a toga exige a ocupação de um dos braços, além de ser uma vestimenta que limita os movimentos expansivos, os chamados gestos largos e efusivos tendiam a diminuir.

A moderação, portanto, é exercício diário, que nos dá, pelo cerceamento da efusividade e da impulsividade, mais tempo para a reflexão, para que nos dobremos sobre o nosso pensamento, antes de pronunciá-lo. Não esqueçamos que uma das imagens caras a Homero é uma referência a “proferir palavras aladas” (ἔπεα πτερόεντα προσηύδα, Ilíada, Canto IV, verso 284). Paralelamente, havia a expressão “palavra que transpõe a barreira dos dentes” (ποῖόν σε ἔπος φύγεν ἔρκος ὀδόντων, Odisseia, Canto I, verso 64). Se as palavras aladas podem ser boas, quando ditadas pela sōfrosyne, elas serão danosas, quando irrefletidas, porque depois que transpõem a barreira dos dentes, tendem a destruir o equilíbrio, a moderação, a reflexão, que habitam a mediania e fazem o mundo avançar.

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  1. Anônimo7/6/25 07:25

    Um tema sempre oportuno, Milton. Que falta faz a moderação no mundo! Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Anônimo7/6/25 08:35

    Obrigado, Gil! Abraço!

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  3. Uma alquimia histórico-literária genial, mestre Milton, e, 'comme d'habitude', didaticamente atual e construtiva

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