Manuel Maria Barbosa de Bocage era filho do bacharel em Cânones José Luís Soares de Barbosa, português e antigo juiz de fora da Castanh...

Bocage, um injustiçado

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Manuel Maria Barbosa de Bocage era filho do bacharel em Cânones José Luís Soares de Barbosa, português e antigo juiz de fora da Castanheira e de Povos, depois ouvidor em Beja, fixando-se finalmente em Setúbal, com banca de advogado, e de Mariana Joaquina Xavier l'Hedois Lustoff du Bocage, filha do francês Gil Le Doux du Bocage, que chegou a vice-almirante na armada portuguesa, e descendente de família da Normandia, região histórica do noroeste da França. Desse casamento nasceram seis filhos, dos quais Bocage foi o quarto. Nasceu em Setúbal em 15 de setembro de 1765.

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Setúbal, em gravura do século XVII ▪ Fonte: Wikimedia
Os altos cargos exercidos por seu pai na carreira judicial e administrativa, aliados à sólida formação literária que também o levou a cultivar a poesia, permitiram-lhe reconhecer o talento de Bocage e orientar-lhe os primeiros estudos.

Foi um poeta de destaque, autor de uma vasta obra que abrange o lirismo, a sátira, a intervenção política e social, o drama e o erotismo. Trabalhou praticamente todos os gêneros poéticos em voga na época, entre eles o soneto, a cantata, o epitáfio, o epicédio, a décima, o elogio, a elegia, a epístola, a ode, a canção, a glosa, a cançoneta, o canto, o idílio, o
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Bocage (1765—1805) ▪ Fonte: Wikimedia
epigrama e o improviso — este último estimulado pela boemia, pelo convívio fraterno e pelo enlevo da inspiração.

Distinguiu-se também como tradutor para o português de clássicos greco-romanos, como Ovídio, Virgílio, Moscho e Museu, bem como de autores de matriz francesa, britânica, italiana e espanhola. Foi um iluminista português dos mais representativos. Elegeu a transgressão como o sal da sua vida. Era um intelectual com asas demasiado amplas para se restringir à realidade incaracterística e limitadora de finais do século XVIII.

Foi no período de falecimento de sua mãe que assentou praça no regimento de infantaria 7, da guarnição de Setúbal, em 1779, quando seu pai o submeteu à férula violenta da gramática latina na aula régia do padre espanhol Don João Medina. Era tal a força da exclusiva educação humanista, que Bocage ficou sabendo traduzir latim, mas incapaz de poder apaixonar-se pelas novas disciplinas das ciências naturais introduzidas no ensino pelas reformas de Pombal e nas fundações acadêmicas de Dona Maria I. O latim era uma distinção social, uma característica de prudência, de capacidade e de ensino prático. Era possível ser sábio, ignorando tudo, menos o latim. Pela leitura das diversas composições de Bocage
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não foram descobertas alusões a conhecimentos científicos, que ele inevitavelmente alardearia se os tivesse.

Depois de ter assentado praça, requereu para ir frequentar os estudos superiores em Lisboa na Academia Real de Marinha, que fora criada pouco antes pela carta de lei de 5 de agosto de 1779 e que era comparada à universidade para a regalia dos alunos. Só eram admitidos, de catorze anos em diante, que era o caso de Bocage. O curso era de três anos, sendo no primeiro onde se estudava aritmética, álgebra e trigonometria plana. No segundo ano, ainda álgebra, cálculo e mecânica. No terceiro, trigonometria esférica e náutica. Uma de suas obras, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas1, é uma das vertentes nucleares de seus escritos em que se pode dar a conhecer o autor em sua verdadeira dimensão. A seguir estão apresentados alguns trechos que Bocage escreveu:

Na manobra, quem é mais diligente Que eu? Quem sabe deitar melhor o prumo? Quem no leme e n’agulha é mais ciente? A carga no porão com regra arrumo, Sei pôr à capa, sei mandar à via, Como qualquer piloto, e dar o rumo; Sei como hei de correr com travessia, E pela balestilha, ou pelo oitante Achar a latitude ao meio-dia. Sei qual estrela é fixa, e qual errante; A lebre, o cisne, a lira, a nau conheço; E Orion, tão fatal ao navegante.

A memória do avô, vice-almirante, deve ter influído na direção dos estudos de Bocage:

Tentarei, por fazer seu gênio brando, Nunca tentados, nunca vistos mares, Os meus antepassados imitando.
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Setúbal, em gravura do século XVII ▪ Fonte: Wikimedia
No período em que Bocage vivia em Lisboa, a partir de 1779, reinava a maior intolerância religiosa e todos que falavam sobre ciência ou cultivavam as letras eram suspeitos de filosofismo. No ano anterior havia emigrado para a França o padre Francisco Manuel do Nascimento, e pelo seu processo no Santo Ofício é que se vê definido bem o meio moral em que era impossível adquirir dignidade ou também um interesse sério pela ciência.

Sua poesia é também relevante porquanto de forma depurada, porque nos apresenta em seus textos, como crítico construtivo do catolicismo oficial na esteira do Iluminismo, é recusada a religião punitiva, pois seu Deus é radicalmente diferente. No excelente livro Obras de Bocage2, podemos verificar suas impressões relativas à religião católica.

Oh Deus, não opressor, não vingativo, Não vibrando com a destra o raio ardente Contra o suave instinto que nos deste; Não carrancudo, ríspido arrojando Sobre os mortais a rígida sentença. A punição cruel, que excede o crime.
Alguns epigramas de autoria de Bocage:

Um chapado, um retumbante Corifeu da medicina Certa menina adorava, E adoeceu-lhe a menina. Eis para curá-la o chamam, Pela alta fama que tem; Geme o doutor, e responde: Não vou, que lhe quero bem.
Levando um velho avarento Uma pedrada num olho, Pôs-se-lhe no mesmo instante Tamanho como um repolho. Certo doutor, não das dúzias, Mas sim médico perfeito, Dez moedas, lhe pedia Para o livrar do defeito. Dez moedas, diz o avaro Meu sangue não desperdiço: Dez moedas por um olho! O outro dou eu por isso.
Um homem, que toda a vida Passou fomes por querer, Com muita debilidade Pôs-se em termos de morrer. Doutor, que de graça o via, E com a doença atinava, Ofereceu-lhe uns certos doces, Para ver se o melhorava. Obrigado, lhe responde O enfermo, estendendo a mão Dê cá ... Bom será guardá-los Para maior precisão.
Estando enfermo um poeta Foi visitá-lo um doutor, E em rigorosa dieta Logo, logo o mandou pôr. “Regule-se, coma pouco” Diz-lhe o médico eminente: “Ai senhor! (acode o louco) Por isso é que estou doente.”

Torna-se muito importante esta divulgação para que se possa inverter a imagem que perdura até hoje junto da população menos informada: o Bocage protagonista de anedotas boçais, promíscuo e pornográfico. Inúmeros poemas foram atribuídos injustamente a esse grande polemista. Seu talento desencadeou invejas contumazes que se prolongaram para além-túmulo. Faleceu de um aneurisma na carótida esquerda após dez meses de agonia, quando acabara de completar 40 anos, no dia 21 de dezembro de 1805.

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Monumento a Bocage, em Setúbal, Portugal ▪ Fonte: Wikimedia
Seu falecimento desencadeou uma intensa comoção nacional. Partira um literato de gênio, na flor da idade, irreverente e paradigmático na sua luta pela liberdade de expressão, por uma sociedade consentânea com os direitos mais inalienáveis que a Revolução Americana e, 13 anos depois, a Revolução Francesa consignaram. Despontou um mito que acompanhou muitas gerações, as formou e lhes proporcionou inequívoco deleite espiritual.

REFERÊNCIAS 1 - Obras completas de Bocage – Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, S. A., Lisboa, Portugal, 1ª ed., maio de 2017, 280p.
2 - Obras de Bocage, Leelo & Irmão – Editores, 144, rua das Carmelitas, Porto, Portugal, 1968, 2.050p.


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  1. Um perfil esclarecedor, Sérgio. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, amigo Gil.

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  3. Um esclarecimento.necessario.

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