Existem admirações que dão na vista. São tão explícitas e de tal tamanho que chegam aos limites da devoção. É este o caso, pen...

Juarez Batista e José Américo, uma admiração admirável

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Existem admirações que dão na vista. São tão explícitas e de tal tamanho que chegam aos limites da devoção. É este o caso, penso, de Juarez da Gama Batista para com José Américo de Almeida. O fã e o ídolo. O discípulo e o mestre. O filho e o pai, talvez. Assim vejo, assim compreendo, assim sinto. E não por mera suposição, mas com base em documentos, em escritos que estão aí para o conhecimento de todos, como uma carta de amor despudorado, ou seja, que não se envergonha em mostrar-se.

Posso estar enganado ou traído pela memória, mas não conheço admiração igual entre nós. Talvez a de Gonzaga Rodrigues pelo mesmo José Américo. Sua recente entrevista a Fátima Farias prova isso. No Brasil, temos outras admirações declaradas, como as de Antônio Carlos Villaça por Gilberto Amado, Carlos Lacerda e Alceu Amoroso Lima. Uma
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A. Carlos Villaça
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Carlos Lacerda
admiração que decorre de um conhecimento profundo da personalidade do outro, de um mergulho nas intimidades da alma e do temperamento do admirado. Uma ciência feita de silêncio e de observação, de intuições e de oitivas de confissões que não chegam nunca a ser entregues ao ouvinte, pois dispensam a explicitação, contentando-se com meras insinuações e meias palavras. Juarez ouviu José Américo da mesma forma que Villaça ouviu Carlos Lacerda, dois grandes oradores em público mas que economizavam palavras na intimidade. Como se não precisassem ou não quisessem dizer tudo, como se preferissem ser adivinhados pelos eleitos que soubessem ouvi-los. Dialogavam cultivando monólogos, para quem tivesse ouvidos para ouvir – e compreender.

José Américo sempre guardou reserva. Sempre foi um filho do silêncio, desde a casa do tio padre, em Areia, passando pelo Seminário Arquidiocesano, na capital, até o casarão praiano do viúvo discreto e saudoso. Um homem pudico, que até na beira-mar cobria os braços com camisas de manga comprida. Um antiboêmio, desde rapaz, estudante de Direito no Recife, na contramão de seus colegas. Homem quase ensimesmado, pouco afeito a extravasamentos, e, no entanto, político, obrigado aos contatos humanos os mais diversos e aos discursos
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J. Américo de Almeida FCJA
inflamados em praça pública, uma verdadeira violência ao seu natural recato, ao seu gosto pelo recolhimento. Ser tocado por estranhos devia-lhe ser penoso. Que se saiba, um homem sem vícios, sem mundanidades, sem luxos ostensivos, sem prazeres assumidos, sem vaidades frívolas, sem orgulhos fúteis. Tinha amor-próprio, claro, sentido de honra e consciência de seu valor. Não se inclinava, salvo para Deus, não bajulava, não abria mão de princípios, e pagava, sem titubear, o preço da coragem, da coerência e das convicções. O poder não o corrompeu nem deslumbrou. A austeridade lhe era inata. Ministro, no Rio, ia e voltava do trabalho de lotação, portando uma velha pasta de couro, como um amanuense Belmiro anônimo. Governador, a mesma postura, a mesma simplicidade que nada tinha de encenação. Era morigerado por natureza e. por isso mesmo, não se atribuía qualquer virtude. Assim nasceu, assim era, assim haveria de morrer.

Dir-se-ia uma fortaleza inexpugnável. Uma cidadela autoprotegida no cimo de uma serrania íngreme. E de fato o era. Todavia, Juarez logrou escalá-la devagarinho, sem açodamentos, respeitando as dificuldades e os obstáculos. Um alpinista desafiando o Everest.
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Todo cuidados e delicadezas com a montanha áspera, inacessível quase. E repassou em palavras aos leitores e à posteridade o retrato exemplar, o busto de bronze que haverá de ficar para sempre daquele que voluntariamente se recolheu junto às areias do Cabo Branco no mais frequentado dos eremitérios. Gonzaga também explorou aquelas alturas, mas preferiu deixar os testemunhos de forma esparsa, em crônicas isoladas, e não concentrados num texto único e maior, como fez Juarez. De qualquer modo, o legado de ambos é valioso para melhor se conhecer um pouco da intimidade americista.

Ninguém melhor que um asceta para decifrar e pintar outro asceta. E, magro, como convinha, sem boemia nem glutonerias, sem hedonismos ostensivos, sem expansividades perdulárias, Juarez era um asceta na figura e nos hábitos. E o outro, José Américo, era um monge, desde sempre, um monge; com algumas licenças de monge medieval, mas, ainda assim, monge, intrinsecamente monge, exteriormente monge. Seu hábito era, na rua, o paletó, e em casa, a camisa de manga longa. Jamais
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J. Américo de Almeida FCJA
uma bermuda nem qualquer outra vestimenta mais à vontade, adequada à beira da praia. A formalidade era-lhe tão natural quanto a pele. Era sempre o magistrado, o ministro, o reitor, o escritor consagrado, o acadêmico, antes e depois da Academia, quase uma estátua de si mesmo, alguém diria. Mas sem arrogância, na naturalidade das coisas que são o que são, sem artifícios nem poses. Não dava intimidade a ninguém, raramente se confessava a alguém, cultivava pudores indevassáveis, era respeitador e impunha respeito, falava pouco e era ouvido, enxergava mal e via longe. Um senhor personagem para um romancista intimista. Entretanto, conversava de igual para igual, entre outros, com o pescador que abastecia sua casa; e ia levar ao portão as suas visitas, que eram muitas. A montanha fazia-se planície sem dificuldade.

E pintando-o, descrevendo-o e decifrando-o, Juarez tomou a si a tarefa de escrever, digamos, o romance de José Américo. Não um calhamaço com a gordura que faltava ao retratista e ao retratado, mas um pequeno volume de pouco mais de cem páginas, magro como convinha ao autor e ao assunto: José Américo – Retratos e Perfis, Edição Correio das Artes, João Pessoa, 1965. Uma publicação sob os auspícios do célebre Plano de Extensão Cultural do Governo Pedro Gondim, que tanta importância teve à sua época.

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Ali está José Américo de corpo e alma, pode-se dizer. Mais de alma que de corpo, também se diga. Qual um Édipo aldeão, Juarez decifrou a esfinge gigantesca, mas não ameaçadora nem monstruosa, como a outra. E o resultado dessa decifração, entregou-o generosamente aos conterrâneos e aos brasileiros em geral. Um documento para a História, dos maiores já escritos na aldeia. E não exagero. Gonzaga concorda comigo. E não falo tomado por quaisquer paixões. Apenas constato. Quem duvidar, que leia, sem prevenções e com espírito aberto, o pequeno/grande livro do professor Juarez sobre a maior admiração de sua vida. E há também, em escala menor de extensão mas não de intensidade, o perfil que ele escreveu em 1966 e que consta da 9ª edição de A Bagaceira, pela Editora José Olympio.

Em 21 de janeiro de 1977, no Palácio da Redenção, por ocasião do lançamento do livro José Américo – o escritor e o homem público, Juarez pronunciou belo discurso em que disse, explicitando sua notória admiração pelo mestre:

“Conheço-o de uma ternura filial. Venho com
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Juarez da Gama Batista
ele de longe. De outros tempos, pouco amenos, rudes tempos de lutas e perigos. De uma dedicação sem limites, de todos os dias e todas as horas, sem vacilações, sem restrições, uma admiração qu ejá encheu léguas de papel impresso e ainda transborda do coração desinquieto. Como uma bênção descida do céu".

Uma das epígrafes de José Américo – Retratos e Perfis diz pouco e tudo diz a respeito da relação Juarez/José Américo, tão clara ela é – e tão bonita. Uma epígrafe retirada de O velho e o Mar, de Hemingway:

“O velho ensinara o rapaz a pescar, e por isso ele o adorava”.


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