Acho que todos temos um deles, vivamos na zona rural, na cidade pequena, ou nas metrópoles surgidas do aglomerado de bairros ora luxuosos, ora simples e periféricos. Sempre entendi que as grandes cidades são feitas de porções pequenas, cada uma com seus modos, suas festas, histórias, personagens e lembranças.
DeWitt e Lila Bell Wallace, fundadores da revista Seleções (Reader's Digest). ▪ Fonte: eBay
Cada uma com vida própria, enfim. Puxe pela memória e, mesmo aí, na sua província, você terá de volta o ser humano a quem admirou, de quem sente saudade e de quem deseja falar ao mundo.
Os editores DeWitt e Lila Bell Wallace devem ter percebido isso quando as “Seleções do Reader’s Digest”, a revista americana com formato reduzido, abriu espaço para a Seção “Meu tipo inesquecível”, um dos carros-chefes daquelas edições chegadas ao Brasil a partir de 1942. Críticas à parte – algumas relacionadas à exaltação do “american way of life” e, outras, dos tipos em questão, para muitos inventados – a revistinha pode se gabar de que já teve uma das maiores tiragens do planeta.
Dito isto, trato de fazer a confissão: hoje, eu escrevo por encomenda. Ou seja, atendo, graciosamente (é bom que se diga), ao apelo do moço Evânio, o jovem secretário de Cultura de Pilar interessado em testemunhos sobre a origem e as personalidades do futebol pilarense. Prepara livro sobre o tema e, assim, quis saber de gente mais velha, como eu, por que o Pilar Recreativo Esporte Clube se transformou em Modena. Não havia como eu tratar disso sem menção calorosa,
O poeta Evânio Teixeira, Secretário de Cultura de Pilar, Paraíba. ▪ Fonte: Mun. Pilar
afetuosa, a meu tipo inesquecível: Heretiano Araújo, um ser humano afável e decente, um camarada tão ruim de bola quanto bom, muito bom mesmo, de coração.
Contei a Evânio que o menino que um dia eu fui acompanhou, embevecido, os tratos que transformariam o PREC no Modena, o time de futebol ainda na mente e no coração de sucessivas gerações de pilarenses. Não que o Pilar Recreativo – com escudo idealizado por Wilson, um incrível pintor de letreiros – fosse título de todo desprezível. Era diferente e tinha sonoridade. Mas eis que alguém sugeriu sua troca por algo que remetesse aos primórdios de Pilar, uma das mais antigas cidades do interior nordestino, a terceira da Paraíba.
O nome Modena surgiu, então, do encontro do ex-prefeito Heretiano Araújo, nosso querido e saudoso Leo, com expressões dos meios culturais e esportivos do município, entre as quais o professor, escritor e poeta José Augusto
Heretiano Araújo (Leo), na década de 1970, época em que serviu como prefeito do município de Pilar-PB. ▪ Fonte: Blog Pilar
de Brito e o também poeta e articulista Alceu Araújo.
Por que “Modena”? Porque o nome remetia ao jesuíta Frei Francisco Antonio Maria, advindo da cidade italiana de Modena, para, à frente de um grupo de índios ariús, implantar o colégio em torno do qual o povoado floresceu a partir do Ano Santo de 1670. Aprovada a mudança na segunda metade da década de 1950, no prédio onde se estabeleceria, depois, o Pilar Social Tênis Clube (lugar onde nunca se viu quadra, rede, bola ou raquete apropriadas a este esporte), Leo e seus amigos apertaram-se as mãos, selando o acordo.
Permito-me, agora, o salto no tempo. No 29 de fevereiro de 2016, uma segunda-feira, voltei de Pilar para João Pessoa com a alma em pedaços. Eu fizera a viagem para o abraço em Nina (a viúva), em Lena (a filha) e demais parentes e amigos do nosso Leo.
Heretiano Araújo (Leo), na década de 1990. ▪ Fonte: Blog Pilar
Evitei olhar para seu ataúde. Sou assim: não encontro sentido nenhum em me aproximar de alguém já incapaz de me devolver um olhar, um afago, um sorriso. Mas não deixo de admirar aquele que se debruça sobre corpos esvaídos como quem espera uma confidência.
Eu não consigo. Prefiro, nesses casos, as boas lembranças. No caso de Leo, entre muitas, foram as da garrafa de vinho compartilhada, dias antes da sua morte, na varanda da casa antiga reformada a capricho sob os olhares do Instituto Histórico, Artístico e Geográfico, na área preservada de Pilar. E, ainda ali, a visão das velhas fotografias do Modena, o time onde deu lá seus chutes, mais por ser o dono da bola do que por seus dotes futebolísticos.
Aliás, foi no campo de futebol que tive revelados, em toda a sua extensão, a dignidade e o caráter formidável daquele que então nos deixava, aos 83 anos de idade, por lance inesperado de um ataque cardíaco. Ocorreu-me, de pronto, que tinha que morrer do coração, o maior, o melhor, o mais exuberante dos órgãos acomodados em seu perfil de homem magro, alto e íntegro.
Leo "em campo". ▪ Fonte: Blog Pilar.
Pois bem, atacava o Modena a trave do time adversário, aquela voltada para o Poente, quando o endiabrado Bicudinho, depois de driblar a zaga inimiga quase inteira, repassou para Leo uma bola redondinha, impossível de errar.
Para quem não fazia gols, aquele era um momento único. Esperei, curioso, a explosão de alegria (dessas que a gente vê, a três por quatro, nas transmissões da tevê), porém, ao invés disso, Leo fugiu dos abraços, enquanto apontava para
GD'Art
o atleta de quem recebera o passe.
Bicudinho não gostou. Vivia do emprego na Prefeitura conseguido por Leo, tinha por este uma estima próxima da adoração e, nem assim, pôde retribuir um pouco das muitas considerações do amigo. A fuga teve para si, neste particular, o gosto amargo do presente recusado. Mas, no geral, refletiu a boa e correta natureza do nosso Heretiano, homem que nunca ambicionou nada que não fosse realmente seu.
Secretário da Prefeitura e da Câmara Municipal, não necessariamente nessa ordem cronológica, Leo foi eleito prefeito para o quadriênio 1973/77, concluindo o tempo de gestão pública sem uma única mácula. Foi quando deu a Pilar o campo de futebol mais invejado das redondezas. Foi para lá que o Botafogo de João Pessoa muito correu quando desejou o treino às escondidas. Não sei se ainda assim o faz.
Menino despachado para os estudos primários no Recife, eu costumava matar a saudade de casa à beira do Capibaribe. Não que este rio caudaloso me lembrasse o Paraíba mais estreito e, habitualmente, seco. O que eu então ali buscava era me entreter com as aberturas da Ponte Giratória
Estádio O Vieirão, em Pilar-PB. ▪ Imagem: Sérgio Bento, via GMaps
à passagem dos barcos. Eis que, no Cais de Santa Rita, já em busca do meu ônibus, topo com Leo. E foi como se o Pilar inteiro me invadisse a alma.
Poucas vezes, alguém terá se identificado tanto com o espírito de sua cidade quanto Heretiano. Impossível pensar em Pilar sem ter-se à mente, de imediato, sua figura impressionante, cordial e querida. Nele, o homem público e o cidadão comum assemelhavam-se um ao outro, naquilo que tinham de bom, de tranquilo e admirável.
Há gente assim: nascida para ser a marca do seu tempo e do seu lugar. Sempre me encantei com sua mansidão e seu comedimento. Nunca me pareceu um homem de gestos bruscos nem largos. Dava-me a impressão de procurar ouvir mais do que falar. E este, sem dúvida, é um dos atributos dos bons e dos sábios.
Com seu desaparecimento, minha cidadezinha, de um certo modo, fez-se mais pobre. Perdeu sua mais fiel expressão para o coração de menino que já tive e, não menos, para o do octogenário que me tornei. Viram, Lila e DeWitt?