A última chuva abraça a primavera trazida por ventos que lembram agosto. Contudo, as pessoas continuam a seguir em frente alheias às passadas do tempo. Flores, carros e relógios são dispositivos da vida rumo a uma finitude desconhecida, por mais que se finjam certezas sobre o instante seguinte ao fechar os olhos.
Transpareço pelas esquinas e ruas como uma nuvem flutuante, ou um cão dono da própria vida que é atraído pelo cheiro da comida, a abelha conectada pelo néctar das flores a sugar vida. A cidade velha me atrai. Faz mergulhar nas histórias. Em outros instantes me afoga nas vivências de anos partidos. Ela me agarra na revisita das marcas visíveis e conceituais das suas paredes e monumentos.
De repente na manhã uma chuva de gotas fortes dá passagem e permite a volta do céu aberto... A mente levanta voo e vai buscar umas saudades aleatórias. Uma misturada de coisas antigas guardadas no depósito da memória que salta à superfície do imaginário como pedrinhas em meio a um pequeno terremoto de magnitude suficiente apenas para ser sentido, sem maiores danos. A terra se divide e surgem objetos de velhos mundos. E reaparecem, feito tempestade, objetos díspares em nuvens de lembranças.
Imagino José Américo de Almeida observando a paisagem da Praia do Cabo Branco pela primeira vez. O “Homem de Areia”, saído do Brejo e do meio dos engenhos, desembarcando no litoral. Penso no sossego dos dias quando o escritor residia na casa de número 3336 à beira-mar e compunha o cenário paradisíaco daquela região da cidade.
Há poesia nos movimentos... No gol gritado a plenos pulmões para uma torcida fictícia quando a bola atravessa um gol demarcado por pedras, sandálias ou pedaços de madeira fincados ao solo; na corrida desenfreada pelo terreno do corredor de pés descalços; no cruzar dos olhos concentrados no adversário do outro lado da rede que já apresenta furos antes de um saque com a bola gasta; no equilíbrio do corpo sobre uma corda ou um skate, ou ainda na escalada da árvore em busca do fruto maduro como se fora um salto em altura...
Eram os tumultuados e confusos anos 70... E eu lembro bem de uma miscelânea de imagens daquela época vomitada em preto e branco através do tubo de imagem da TV. Guerra do Vietnã, o Ira na Irlanda, John Lennon, um Papa que morria e um novo que sorria, mísseis apontados para o céu, bandeiras e discursos, o rebolado e a morte de Elvis Presley, ruas ocupadas e os cassetetes impondo uma “ordem”. Por outro lado, a mente captava ondas sonoras de uma caixinha mágica chamada rádio. Elas ainda repercutem nos meus ouvidos como se eu permanecesse nos agitados anos daquela década.
Piados quebram o silêncio das primeiras horas. A luz desperta bem-te-vis, canários da terra, rolinhas e outros pássaros que trazem em primeira mão as rotineiras notícias do dia. Aqui e acolá há um movimento humano de domingo despreguiça o cenário. O Sol já se faz presente há algumas horas, chega para descortinar a madrugada friorenta do fim de junho e revela as formas dos bancos, calçadas e árvores da praça.
Eis que chove novamente por todos os cantos e a água sempre refresca a memória quando o junino mês se estende... Já em seus meados dias enfeitados de tantas festas se reveste de tiras de papel e pano, bandeirolas coloridas por terreiros e postes, contraste em dias de céu nublado. Junino de alegrias, de tempos sorrisos, múltiplos encantos com sabores de receitas do milho de vivo verde e gosto a mais no sentimento de enamorados que passeiam na garupa e carrocerias pelas estradas, campinas e fantasias.
A estrada abriu-se em um abraço da saudade e, ao mesmo tempo, sinalizou reencontros enquanto o dia ainda dormia durante o avanço pelo tapete negro espichado por entre planos e elevadas passagens. A estrada já conhecia os passantes de outras épocas e sabia que fazia parte da história escrita pelas idas e vindas na aproximação das distâncias entre corpos e almas. Agora, um novo capítulo era escrito, antes imaginado tantas vezes, do mesmo modo desejado ser indefinidamente adiado. E tudo ao fim e a cabo se resumia a cumprir um ritual.
Reflexos distorcidos dão noção realística ao imaginário mundo que vaga pelas cabeças e mares puxados pela força do fogo ao bater na água e também na areia. A projeção é um toque de criação para formar espaços de contemplação. Fotografias das câmeras abertas: olhos. Ângulos, luzes, sombras, essência, visão interior, fazem parte da receita. Quem sabe é sonho a visão do espelho, do retrovisor, da fachada da loja, da garrafa de vinho, da vela bailarina atiçada pela brisa.
O ouro que plantou o homem à terra e cultivou dramas se foi, restou talhado como ornamentação de igrejas e soterrado em paredes de velhas minas e da história. Aos vivos restou o chão cercado por serras e os alicerces antigos fincados nas rochas, equilibrados em caminhos imprecisos e íngremes. Só o tempo com suas incertezas traz algum sentido. Antes lágrimas, sangue e chibata, agora poses e história. Minas Gerais é terra de misturas, de desencontros e encontros, é plural, de início forçosamente, depois à revelia da vontade dos homens.
E logo uma cidade grande com prédios, ônibus, pessoas e toda infraestrutura é erguida a partir das pedras, ou de pedaços de papel e papelão. São esquinas, postes, avenidas... E até aeroportos com seus aviões e submersíveis. Também surgem campos de batalhas com exércitos postos para o combate com seus canhões, veículos militares, trincheiras, explosões... Ou mesmo um comboio formado por uma fileira cavalos e muares segue em deslocamento adentrando desertos imaginários...
E no meio da noite surgiram desenhos na escuridão. O céu rabiscado em furiosos traços como se fora grafados por uma mão agitada, acordada de um pesadelo ou que tivesse uma ideia sensacional e necessita urgentemente colocar tudo para fora, registrar no horizonte. A tinta branca traça formas geométricas indecifráveis na superfície delicada das nuvens transportadoras de chuvas. E todo aquele turbilhão penetra a janela, invade o quarto, clareia o sono, um espetáculo teatral descortina o horizonte acompanhado de uma melodiosa sonoridade que pousa depois devido ao distanciamento físico.
Flocos brancos e roxos ladeiam o tapete vermelho feito de tinta sobre o cimento frio inanimado e de horas quentes dos meados do dia. Sobre os galhos perfilados, enfeite natural, a passagem tem um perfume sutil, dourados como tochas suavemente brilhantes ao serem tocados pelos raios do Sol no findar das tardes dos últimos dias do verão.
Luzes se confundem em horizontes noturnos. De um ponto flashes disparam trovoadas e prometem chuvas para breve... em outro canto intensivamente piscam aparelhos com pequenos sinais sonoros. A chuva clareia curiosamente intensa a noite com suas nuvens baixas e pesadas e os equipamentos que monitoram o corpo humano cintilam alertas por toda a madrugada. São túneis que dão passagens. Em ambos os casos estão a vida e os seus mistérios e os desafios.
Quero retornar aos campinhos de pelada dos bairros, lugares onde rolam bolas feitas de borracha, de pano, de plástico, improvisadas ou oficiais feitas de couro e costuradas industrialmente. Quero voltar aos locais de chão de terra batida, algum areal ou onde há mesmo grama maltratada. Por ali, onde pés descalços na maioria das vezes ou protegidos por alguma chuteira surrada correm, chutam, dividem a bola.
Em casa, nas avenidas, nos becos, nos clubes e pelas ladeiras... O Carnaval tem uma energia diferente e como festa popular crava na memória várias lembranças. O colorido, as músicas, a alegria, o sorriso, a maratona. E a mente vai arquivando em pastinhas feito uma aquarela as imagens, sensações e situações.
Um sino badala uma hora fechada na torre da Catedral Basílica de Nossa Senhora das Neves, chamando os fieis à missa. As batidas soam como uma memória longínqua que retorna a intervalos simétricos do tempo. Ao redor, os carros seguem fluindo pelas ruas próximas, descem pela Rua General Osório ou por laterais até sumir. Nas calçadas, um ou outro passante aperta o passo em busca das ilhas-sombras das árvores e fachadas dos prédios. O dia pela metade tem um Sol por testemunha de tudo o que acontece e até passa despercebido.
O amanhecer instala a cantoria de sonoridades diversas, disparadas de pequenos corpos com coloração e tamanhos diferentes. Galhos de árvores distantes, fios, alto de muros se transformam em palco para o canto de rolinhas, sibitos, bem-te-vis, sabiás, beija-flor e outros pássaros que residem naquela área urbana. Apesar da calmaria daquelas paragens, do sossego quebrado pelos piados em tons múltiplos, são poucos os que param para prestar atenção ao concerto da passarada.
Uma porta, um pedaço de calçada, um batente de entrada, o meio de uma rua com muitos fios de histórias com início, meio e fim, lugares onde mundos se cruzam. Há placas, seja nas esquinas cruzadas, fachadas armadas, monumentos silenciosos com indicações e versões e olhares pelos centros seculares. Caminhar de antes e talvez de futuros. Por ali tudo se transforma em olhos, pelas frestas de portas, nas janelas lacradas por tijolos recentes. E, ainda assim, o mundo se abre em paredes antigas, reavivando camadas de tintas, ressuscitando cenas vividas outrora.