Haveria uma missa agendada para as dezenove horas. Pequenos grupos isolados distribuíam-se pela Igreja, e os novos coroinhas circulavam eufóricos, com suas imaculadas vestes, preocupados em conseguir doações para a aquisição de uma imagem de São Tarcísio, o jovem mártir. Os costumeiros frequentadores se inquietavam com o atraso, alguns levantavam e se dirigiam aos janelões com vista para a cidade; outros se encaminhavam à porta principal para comprar pastéis de nata, vendidos com a mesma finalidade: a estátua de 80 a 90 centímetros do padroeiro dos pequenos ajudantes das liturgias. A temperatura caía, e um vento frio causava arrepios e tremores. Os mais prevenidos buscavam agasalhos nas suas bolsas,
uns casais se abraçavam nos bancos, um senhor, disfarçadamente, fechou uma folha da esquadria após chegar ao limite de sua tolerância ao gélido tempo.
O silêncio inicial foi substituído gradativamente por conversas sussurradas, alguém que tossia ansioso, outros que se agitavam nos seus lugares, provocando o ruído de atrito na madeira.
A paz voltou ao ambiente quando um homem se aproximou do púlpito e anunciou que a Missa atrasaria, e que todos liberassem a Nave Central para a passagem de uma procissão que surgiria em breve.
A espera distraiu a atenção para o centenário templo. Sem estilo definido, apresentava um pé-direito alto, com arcos laterais, em tons de ocre e azul, leves detalhes em branco. O teto abobadado recoberto com madeira lembrava o azul do céu em dias de verão. No altar principal, um Cristo sofrido, no ponto mais alto, reforçava a consciência de que a vida em algum momento é de impotência e de dor.
D. Lucena
“Uma coisa se denomina verdadeira enquanto é tal como deve ser”.
Anselmo de Cantuária
E, como velhos amigos cumprimentavam-se afetuosamente, sem exceção (inclusive desconhecidos). Um som entrecortado ao capricho das ondas sonoras e da ventania foi escutado à distância. Como um alerta, mobilizou as pessoas até a balaustrada que descortinava, ao longe, a procissão, oferecendo um prazer indefinido à curiosidade coletiva. Luzes de velas portadas pelos participantes traziam memórias do passado.
“Vós acendereis a minha candeia, Senhor Meu Deus e iluminareis as minhas trevas”.
Santo Agostinho
PM Bananeiras
“Maria, mãe dos caminhantes
Ensina-nos a caminhar
Nós somos todos viajantes
Mas é difícil sempre andar”.
Os sinos redobravam para a recepção! Uma emoção à flor da pele na identificação com os iguais.
A visão do aglomerado fervoroso lembrou Freud e suas palavras... Ele usou o termo “massa” para definir uma multidão, aglomeração, grupo, e sobre esse tema escreveu “Psicologia das Massas”. Considerava-a como um todo, que teria o poder de liberar,
PC Paraiwa
Freud, foi além quando escreveu: “tem de haver algo que os unia entre si”. E, sem aprofundar além do necessário para poucas palavras, questionamos a afirmativa de que “a massa é totalmente guiada pelo inconsciente”. Existem exceções, e essa, seria uma delas.
Observados individualmente, os caminhantes representavam todas as cidades do brejo paraibano, e lugarejos como sítios e comunidades. A fé que a todos unia estava escrita nas camisas brancas de malha, cada uma com sua identificação, local e seu nome. Interiormente a fé os fez subir montanhas, superar lances de escada,
“A verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana”.
sublimando suas dores físicas na força espiritual, na convicção e na sede de verdade.São Tomás de Aquino
Para Freud, a fé é uma ilusão necessária, a necessidade de ter “um pai protetor”, uma justificativa, para suportar a dor. E, como deve ter sido difícil atravessar as circunstâncias, críticas da vida, sem fé, o que significaria sem esperanças, nos braços do desespero existencial... O pai da Psicanálise, como se dizia ateu, amargou nos seus últimos anos a “falta de uma ilusão” para amenizar a consciência da morte, algo que assegurasse a eternidade, que compensasse o seu ser-no-mundo.
“Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma falhar / Mesmo quem não tem fé / A fé costuma acompanhar”.
Gilberto Gil
PC Paraiwa
“A fé nos ensina que a suprema ventura da outra vida consiste nessa contemplação da magnificência divina, e faz com que nos deliciemos com a maior felicidade de que possamos sentir nessa existência”
Descartes