Não é segredo para nenhum estudante de História, e possivelmente para nenhum cidadão pessoense minimamente atento, que as injunções políticas nomearam e renomearam essa terra diversas vezes e que, talvez, o problema de saída seja simplesmente de a mesma ter um nome.
Nomear é um ato de tomar posse, de possuir e de estabelecer propriedade e, quem sabe, os Potiguara sequer tivessem um nome para o solo onde hoje fica a cidade, mas para o rio que lhe dá parte substantiva de sua vida e que define a transitoriedade da mesma. Ao espoliarem a terra dos seus habitantes primitivos, os luso-espanhois lhe deram nomes, que configuravam seu senso de propriedade, tais como Nossa Senhora das Neves (demarcando um território Católico), Filipeia (demarcando um território Monárquico somado à denominação Católica); mas tudo leva a crer que o nome indígena deve ter prevalecido pelo costume, apesar de também os holandeses terem tentado impor outro nome, qual seja, o de Frederica (aportuguesamento de Frederikstadt).
Frederykstad (atual João Pessoa) ▪Frans Post, 1638
Por ficar entre as que já occupavaõ,na Ilha de Tamaracá, & no Rio Grande, resolveraõ, que a Província,& Cidade da Parahiba; cujo nome tomou do Rio que a banha, & lhe foi | sempre mais próprio, sem nunca o perder de todo, pelo que lhe deraõ antes os Nossos, de Felippea, depois os Olandeses, de Friderica: estes,de Friderico, Príncipe de Oranje; & aquelles,de Felippe,Rey de Espanha.
Mapa de Frederykstadt (ou Cidade Frederica)Johannes Blaeu, 1640s
Em 1930, uma mais recente e controversa viragem trouxe outro nome para a mesma cidade — que parece ter o intrigante hábito de manter uma média de um nome por século (com o clímax nos primeiros 60 anos), o que garante emprego para professores de História explicarem esses imbróglios de vez em quando — a partir de um crime de motivações pessoais com rebates políticos e, nesses últimos 91 anos, a cidade mantém o nome do finado Presidente do Estado da Paraíba. Como estamos perto de mais um século de nomeação, o que o futuro pode nos reservar? Ficaremos por aí ou inventaremos novos nomes?
Edificações com influência de arquitetura holandesa no Centro Histório da cidade de Nossa Senhora das Neves = Filipeia = Frederikstadt = Parahiba = João Pessoa ▪
Mas não é sobre isso exatamente que queremos falar, apesar desse intróito ter tudo a ver com o que se seguirá. Queremos falar das recentes e agudas tensões dos diálogos com o passado e que têm sacudido diversos países do mundo,
Ponto de Cem Réis ▪ Paraíba, 1970s
Voltemos às décadas nas quais a cidade trocou de nome cerca de três vezes – Filipeia, Frederica, Paraíba – e a diversos rebates que se colocam atualmente diante da toponímia de um lugar bem no coração cívico de nossa cidade; falamos aqui do popular Ponto de Cem Réis, oficialmente denominado Praça Vidal de Negreiros. Antes, porém, de recuar ao século XVII, vamos fazer um sobrevôo pelo XVIII.
Comecemos por um pouco do que sabemos acerca do lugar.
Até o século XVIII esse lugar, situado na então extremidade sul da Rua Direita (atual Duque de Caxias) era um pequeno declive, que caminhando mais um pouco a sul, voltava a ter leve subida e seguia para o sul da Capitania. Qualquer um que hoje transite a pé o pequeno trecho entre a Igreja da Misericórdia e o Palácio da Redenção sentirá essa suave descida e a posterior subida. De tal maneira, considerando sua topografia, o local era chamado de “baixa” e durante certo tempo se denominava Rua da Baixa. Em algum momento do século XVIII, a população de ascendência africana da cidade ergueu na “baixa” a Igreja de sua Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que demarcou o lugar por mais de dois séculos até à sua demolição no início do século XX, assim como também se deu em relação a outro templo próximo – de Nossa Senhora das Mercês dos Homens Pardos, na atual Praça 1817 – que também foi demolido na década de 1930, de tal forma que foram apagadas marcas importantes da presença afro-brasileira na nossa cidade.
ESQ: Até o momento, a única imagem remanescente encontrada da antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos / DIR: Igreja de Nossa Senhora das Mercês dos Homens Pardos, demolida em 1930.
Por ter se constituído num ponto central da circulação dos bondes na cidade, a antiga “baixa” ou Largo do Rosário acabou ganhando a denominação popular de Ponto de Cem Réis, que até hoje prevalece no linguajar habitual, apesar de sua denominação oficial em homenagem ao paraibano André Vidal de Negreiros, considerado um “herói da nacionalidade” brasileira por gente como Francisco Adolfo de Varnhagen, um dos pais de nossa historiografia. Também um seu contemporâneo, o célebre Padre Antônio Vieira, elogiou-o ao Rei, muito embora tenha sofrido certo desencanto depois de algum tempo.
Busto de Vidal de Negreiros ▪ Ponto de Cem Reis
Não iremos questionar de antemão a figura de Vidal, muito embora ele, pelo seu destacado papel na expulsão dos holandeses, tenha granjeado honrarias de benesses em sua época, sendo agraciado pela monarquia portuguesa com a governança do Maranhão (1655-1656), de Pernambuco (1657-1661) e de Angola (1661-1666). Em Angola, em 1665, Vidal comandou as forças lusas contra o Rei do Congo, D. Antônio I (reconhecido como um Rei Católico e até então aliado dos portugueses), que teve o seu ponto culminante na Batalha de Ambuíla, na qual as tropas do monarca congolês foram desbaratadas e aquela monarquia foi submetida à força das armas portuguesas. É concorde entre historiadores de diversas correntes que a destruição da monarquia do Congo fortaleceu
Estátua de Livardo Alves ▪ Ponto de Cem Reis
Que fazer, então?
As opções são muitas e externamos aqui o que consideramos mais consequente.
Não nos parece que a pura remoção do monumento efetivamente leve a uma reflexão sobre o lugar de construção de uma plena cidadania para a população afrodescendente em nossa cidade, mas consideramos mais procedente e educativo que se construa no lado oposto da dita Praça um monumento de vulto – mediante consulta pública e concurso – que destaque a presença da cultura negra em nossa terra. Isso também poderia ser acompanhado da eventual troca do nome do logradouro. Dessa maneira, Vidal e o monumento da “Pequena África paraibana” estabeleceriam esse “tenso diálogo com os tempos”, como toda boa história crítica tão bem sabe fazer. Seria um processo educativo em plena praça pública. No outro canto, observando do final do século XX, Livardo Alves contemplaria o diálogo entre os séculos XVII e XVIII, e nós, em pleno XXI, aprenderíamos um pouco mais sobre a história da nossa cidade, de tal forma que possamos nos tornar cidadãos mais plenos.