Só deu o tempo de entrar. Os primeiros disparos soaram quando Dega colocava rodelas de tomate na gaiola do sanhaçu, que deve ter se ...

Menino Francisco

Só deu o tempo de entrar. Os primeiros disparos soaram quando Dega colocava rodelas de tomate na gaiola do sanhaçu, que deve ter se machucado ao sapecar daquele jeito as asas na gaiola. Ato reflexo, Dega bateu a porta da gaiola para baixo e parou com a cabeça inclinada e ligeiramente projetada para frente, querendo escutar talvez alguma voz, enquanto novas detonações aconteciam, mas desde o primeiro momento, não deu para confundir aquilo com fogo de artifício nenhum.

Debaixo daquele matraqueado, ele se virou e retirou alguma coisa da gaveta, e em seguida baixou o volume do rádio, enquanto fazia sinais de lá, para que encostasse a porta da frente, o que foi feito, meio no desajeito, mas sem descuidar de passar a chave, e ao voltar-se, vendo que ele já escorava a outra, deixando-a aberta, no entanto. Aí veio a grande explosão, aquela coisa estúpida.

A ela seguiu-se baita fuzilaria, maior tirinete, e depois tiros esparsos, e depois seguidos novamente, ficando nisto até o roncar de motores, diversos em tempo e lugar, mas vindo todos da mesma direção, e todo aquele volume se abatendo num segundo momento, curto, para logo depois ressurgir, de forma decidida e crescente e quase homogênea na direção de onde estavam, chegando a emparelhar nessa dimensão contígua do espaço, do próprio sentido físico, à essa altura tornando-se (o volume) hipnótico e avassalador, rolando borrachudo e ensurdecedor numa instância sincrônica de enxurrada, logo invertendo o próprio efeito e descendo desabalado na rua.

A estrada que dá para a fronteira com o Pernambuco passa rente à vilazinha, da família Macena. De lá eles ouviram aquele barulho de carros em alta velocidade, descendo, com os intermitentes balaços, o som aumentando na direção deles. Fecharam as portas e ouviram-nos passando, ainda desfechando um tiro ou outro.

Aquilo, que não havia de ser outra coisa, só combinava com a hipótese inicialmente aventada pela tia Beza, depois que Agenor, falando como um oráculo, de dentro da rede, deixara Gil Macena ainda mais perdido sobre o que estava acontecendo, É tiro, pai, dissera ele.

As coisas, de fato, só começariam a fazer sentido depois que a tia Beza, batendo subitamente com as palmas das mãos no ar, e depois as pousando no rosto, mansamente, como se estivesse a colocar emplastros de chuchu sobre os finos sulcos que o tempo implacável riscara como numa gravura de metal sobre a matriz rechonchuda das faces, exclamasse, Deus do céu, pelo manto da Virgem se hoje não é o dia do banco pagar!

Dentro do silêncio que se seguiu, Adauto D’Chiquinha disse ter escutado um grito de homem, um desses gritos intempestivos de algum popular, acostumado a gritar na rua, feirante ou cabeceiro, e que depois começaram a irromper vozes diversas, muitas delas de meninos, e que pela porta ainda semicerrada viu uns três deles passando a correr, excitados. Dentro da mercearia os dois homens resolveram então abrir outra vez a porta da frente, e assim puderam ver as pessoas começando a surgir, para uma hora daquelas, numa quantidade que talvez não lembrassem ter visto antes.

A movimentação pela rua veio em seguida. Algumas pessoas no sentido rua acima, para onde acontecera, e de lá acorriam outras, em sentido inverso, para o lugar onde talvez achassem que estivesse ocorrendo, ou fosse ocorrer, ainda. Davam a impressão de estarem ainda sob efeito inercial daquele fogo mais intenso, semelhante aos que sobrevivem a terremotos, mas continuam, depois que os abalos se vão, a sentir tremores na carne. Havia júbilo, no entanto, por trás do rumor escandaloso.

Adauto D’Chiquinha lembra-se que, em pouco tempo, pelos rumores chegados até a calçada da mercearia, já sabiam eles que toda aquela guerra se travara em função de roubo, ou tentativa, embora quando Dega voltasse a aumentar o volume do rádio, na expectativa de notícias, tocasse uma música após outra, sem parar nem para dar as horas, cedinho da manhã e uma rancheira forrozeira daquelas, emendando na outra, como se o locutor houvesse sumido de lá, da Rádio País.

Na porta, Adauto parou e olhou a rodinha de rapazes que se formara, ali no canteiro, logo após a calçada. Preparava-se para entornar a bebida quando um deles – rindo e gritando de contentamento - apontou para o outro lado da rua, dando tempo a que visse a ambulância da municipalidade, a velha Veraneio, dobrar na esquina e entrar na rua principal como se numa falsa demonstração de preparo e agilidade para situações de emergência, mas, na verdade com pneus desgastados a ponto de sobrar um pouco na curva, e nela inclinar-se perigosamente, mas ligando a sirena tão logo se firmou nos eixos, e nem bem aquele uivo rascante atingia o ápice, era desligado na hora, debaixo das vaias que irromperam. Um uôu grave, de queda rápida, deixando no ar restos de som por evaporar-se. Não tinham digerido ainda a mais nova irrupção sonora vinda da rua, e ainda longe de refeitos do feroz tiroteio de há pouco (a cidade inteira longe disso), estremeceram fortemente quando a buzina da bicicleta do pão estourou para dentro da mercearia seus aproximadamente oitenta decibéis de alarmante desespero em tom menor, aplicando susto geral a todos.

Sem ser visto, Menino Francisco estacionara a bicicleta do pão na calçada lateral. A bombinha de borracha na embocadura da corneta era tudo de que precisava para provocar sustos nos outros. Em quatro anos de entregas não conseguira ainda fazê-la falar. Mas a brincadeira resultara benéfica: tinha provocado descarga emocional e liberado tensão. Todos riram depois, Cuidado no tiro, Menino Francisco, brincou Adauto D’Chiquinha, Cem de sal e 20 doces, disse Dega, estendendo o balaio.

Menino Francisco tinha a cabeça abaixada enquanto fazia o translado do pão, Parece que a ambulância foi pegar Pedrinho de Arnaldo, baleado para morrer, disse. Dega perguntou quem havia dito aquilo, e ele, Ôxente, seu Dega, eu vi. Estirado na rua, arrodeado de gente. De volta manobrando a bicicleta, antes de montar, perguntou, E amanhã?

Era sempre assim, nos últimos dias do mês, antes do pagamento, a conta do pão caía até por mais da metade. Os fregueses iam encolhendo os gastos diários para evitar excesso de mês no final do bolso. Economizavam com objetivo de comer menos, mas depois do pagamento o nível de consumo voltava ao padrão de antes, e em dia de pagamento, como aquele, o normal seria dizer ao Menino Francisco que dobrasse a medida para o dia seguinte, acrescida de uma variedade de bolachas. Mas agora, com aquilo acontecendo, não ia arriscar, O mesmo de hoje, respondeu.

De cara assustada, um menino chegou-se no balcão. Era filho de Teofre, tinha vindo buscar o pão. O preço foi lançado na caderneta, depois despachou-se o pão. Dali a pouco foi entrando o próprio Teofre. Teve de cavar a passagem com os braços, no meio de tantos meninos na calçada. Muita gente afluíra para aquela esquina da rua principal, vinda pela transversal que nela desembocava. Já viram uma coisa dessa? gritou, da porta. Trazia cajaranas numa das mãos e apontou o copo, falando que os ladrões haviam limpado a caixa-forte. Levaram tudo, disse.

Adauto tinha ingerido a primeira dose e fechou um olho numa meia careta, enquanto ejetava os lábios finos, valendo-se do buço longo e agora bem mais franzido, na explícita intenção de formar um bico que lhe sugasse oxigênio para a boca. Nem bem encerrou a careta e já quis saber se alguém morrera no tiroteio Não sei, mas bem capaz, disse Teofre, há uma grande multidão aí pra cima, duvido nada, respondeu. E Pedrinho de Arnaldo? perguntou Adauto. O que teve? Estava a pouco na Barbearia do Benício. Passei lá e vi, respondeu Teofre. Alguém disse então que o Menino Francisco saíra dali jurando ter visto quando o levaram na ambulância. Baleado. Os homens se entreolharam. Teofre rompeu o silêncio Não pode ter juízo, isso é brincadeira que se tire com a pessoa?

(Fragmento de O Verniz dos Santos Policromados, romance, 180 pgs)

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