Propondo-se a uma arqueologia da noite, Helder nos conduz poeticamente a um mergulho no escuro de que nos constituímos e que é a própria luminosidade em sua força mais intensa. A noite remete à tragicidade própria da existência, à questão do nada, do abismo no qual estamos suspensos, como finitos que somos, mas do qual fugimos, perdidos na agitação incessante e superficial da vida pública, impessoal.
Remete, do mesmo modo, ao inconsciente, às minudências da vida secreta que repousa no fundo de cada um de nós e sobre a qual nenhum poder, nenhuma intervenção ou controle consciente é possível. Arqueologia soa como um passeio à arkhé, à origem, ao que ocorre nesse nível obscuro da noite que somos e que a arte, enquanto poiesis, ação criadora, apreende e revela em resplandecência e brilho. A discrição, que qualifica a arqueologia no título - discreta - alude ao comedimento, ao pudor próprio dos que sabem e reconhecem o caráter inesgotável e plural das forças vitais em jogo no turbilhão do existir.
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Outro perigo é o filosofar, que é de fato o pior deles, porque faz o homem se prender à rigidez da racionalidade lógica e se crer um falso deus, com autoridade para dizer a última e única verdade. O terceiro perigo, entretanto, esse a que me arrisco sem amarras, bom perigo e por isso benfazejo, é a vizinhança do poeta que canta, que está em permanente proximidade com a compreensibilidade de tudo que é, ouvindo o apelo do existir, dizendo o que se mostra, o que se ilumina e refletindo a condição mesma da existência como lugar de revelação.
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Aqui vale lembrar Homero, que chama nossa atenção para o simbólico, para o ausente no presente, para o mistério do sentido, acessível apenas ao vidente, que tem o dom de penetrar no aparente.
“Entre eles se levantou então Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos. Todas as coisas ele sabia: as que são, as que serão e as que já foram.” Calcas era o vidente, que não era um delirante, um sonhador entregue a devaneios. Pelo contrário. É alguém, como o poeta, encantado, extasiado, entusiasmado, enlevado, embevecido, seduzido pelo existir, colocado por isso em uma dimensão diferente daquela dos outros homens imersos no cotidiano.
Saber é cumprir, como ele, nosso destino de intérpretes, de criadores de mundos; é fazer, cada um, sem medo, à maneira dos poetas, a dolorosa, difícil, surpreendente, extraordinária e livre experiência da verdade. Sua noite nos alcança como a noite da pintura de Pedro Américo, paraibano de Areia; como no quadro famoso do poeta das tintas, vem também ela, pintada com letras, acompanhada dos gênios do estudo e do amor.
Tomo por fim, emprestado, o martelo de Nietzsche. Dirijo-me com ele à valorização socrática do mundo lógico racional, responsável pela cisão entre verdade e mentira, e convoco o leitor a um gesto lúdico, com sabor de jogo e divertimento: experimentar com a poesia o prazeroso caminho da mentira, da mentira estética, em busca da verdade.