A vida de Bastião não era um poço, mas uma cascata. Sonhava com tudo e em galgar posições restritas a quem já chegara ao topo da pirâmi...

Bastião e o sonho

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A vida de Bastião não era um poço, mas uma cascata. Sonhava com tudo e em galgar posições restritas a quem já chegara ao topo da pirâmide social. Nunca se acostumou com o miserê em que se criara.

O pai desastrado, bom profissional em consertos de eletrodomésticos, não supria a ânsia de Bastião que via gente se tornar famosa no rap; ele ensaiara num dos grupos, mas fora logo alijado por não possuir a ginga própria, nem o molho do ritmo.

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Celyn Kang
Filho de mãe desconhecida, mantinha com o genitor relação formal, de bom dia seco e até logo petrificado na língua. Sabia que sua adolescência já se acabando não o permitirá subir, por tal relação tão fortuita, formal. Bastião jamais experimentara carinho de ninguém.

Era amargo, amarrado, de pouca conversa. Esteve em arredores sombrios, consumindo sonhos nada líricos, fizera parte de rock pesadão, arranjara dinheiro sobrado da divisão que o comando do grupo fazia: comprava o que em casa não tinha: lanches, almoços, alguma camisa.

O pai sacudia nas amantes encobertas tudo o que ganhava. Bebia cana brava, fazia e acontecia, em desafios a companheiros da patota. Ambos se encontravam apenas para dormir; duas camas sem conforto, o cachorro ganindo de fome, o calor desafiando o ventilador de hélice quebrada. Um horror.

Naquela pisada, o sol nascia carrancudo e a noite era de uivos, de lua presa, sem qualquer poesia. Nascera no Varadouro, entre oficinas meladas, dentro de um casebre. Quando queriam assistir um jogo de futebol, iam à mercearia já arruinada que ficava a duas quadras.

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Celyn Kang
Bastião se encontrava com o tempo, cada dia, sem saber soletrar. Analfabeto como o pai, se dava a extravagâncias e furtivas saídas, procurando a luz que não encontrava. Ainda frequentou o grupo escolar, rasgou os livros e cadernos, meteu-se a vendedor ambulante: produtos eletrônicos que um senhor lhe dava para negociar. Eram radinhos de pilha, outras miuçalhas. No final do dia, com a venda caindo pela concorrência, entregava o apurado ao dono da mercadoria: este lhe estendia uma merreca.

Mas Bastião nada via além. O além estava no tabuleirinho encostado na porta fechada de uma loja quebrada. Passava todo tipo de gente da classe média puxando pra baixo. Havia tipos engraçados e o vizinho dele lhe fazia propostas indecentes. Não aceitava.

Certo dia, arriscou na mega. Fez alguns pontos. Sumiu com a grana retirada do banco. O banco foi abandonado para sempre com algumas mercadorias miúdas. O pai cansou de esperá-lo. Bastião, hoje, é dono de armazém não sei em que cidade. Longe daqui. Comerciante, no topo da pirâmide. Dizem que mudou até de nome; frequenta as mais disputadas rodas sociais chiques da localidade onde mora. Esqueceu de ser mecânico de autos. Está no alto.

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