Multipliquei-me, para me sentir
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma
um altar a um deus diferente.
(Álvaro de Campos. Passagem das horas).
Autobiografia é uma das modalidades da “escrita do eu”, as outras são diários, confissões, memórias. Em cada uma dessas modalidades há o extravasamento do “eu”. Na autobiografia, a vida interior é passada a limpo e se compõe de reflexões sobre a vida, pensamentos, emoções, análises do mais recôndito do ser. Geralmente as autobiografias seguem uma ordem cronológica, isso não acontece com Autob/i/ografia (Ed. Arribaçã, 2023), de Solha. Espírito irrequieto e não afeito às convenções, o autor extrapola os limites tradicionais das autobiografias. Em flashbacks ou caminhando para o momento presente, às vezes até de forma premonitória para o futuro, retalhos da vida são apresentados como se estivéssemos vendo um filme com seus avanços e recuos.
Alexa Pxb
WJ Solha
Acervo pessoal
Acervo pessoal
Destaco as explicações sobre o seu fazer literário, os desafios que encontrou na execução de alguns trabalhos literários que exigiam esforços que pareciam intransponíveis, mas que foram conseguidos e com êxito.
Há certas passagens dignas e nota e anotei algumas. Sobre Trigal com corvos, o primeiro livro da série de “tratados poético-filosóficos”, ele afirma que não foi fácil, trabalhou durante onze anos para ter a versão final. Uma leitura prévia do texto pelo crítico João Batista de Brito dos originais veio na companhia de um parecer – “solto demais, discursivo , conceitual , denotativo demais para ser poesia”. A opinião de JBB foi decisiva para o aprimoramento do livro que ficou entre os finalistas do Prêmio Nestlé.
Capa de 'Trigal com Corvos'
- No seu tempo o mundo não tinha cor?
A filha Andréia era criança, o pai começou a contar uma história de uma linda menina que não tinha pai nem pai, ela vibrou e exclamou:
- Obaaa!
A respeito da Cantata para Alagamar, afirma que reuniu três pessoas bem distintas: um judeu (Kaplan), um bispo (Dom José Maria Pires) e um ateu ( Solha). Essa reunião de pessoas de pensamentos diferentes não ocasionou nenhum mal-estar entre os três, foram momentos de perfeita união.
José Alberto Kaplan / Dom José Maria Pires - Acervo
Na área da pintura, o destaque vai para Homenagem a Shakespeare, trabalho artístico para o auditório da reitoria da UFPB, “um retângulo de cerca de vinte metros quadrados, composto de 36 telas, cada uma alusiva a uma obra-prima do Bardo” (2023:p. 150).
Seria impossível esgotar os comentários desta autobiografia na coluna “Baú de livros”. Fica a recomendação da leitura, há muito para ser desvendado neste livro que oferece um panorama literário e artístico de quem viveu e vive intensamente cada momento da vida.