Dissemos na primeira parte deste trabalho que a intitulada “Autobiografia do poeta”, de Manoel Camilo dos Santos” enquadra-...

Sobre a escrita autobiográfica em Manoel Camilo dos Santos (2)

cordel autorretrato escrita autobiografica manoel camilo santos
Dissemos na primeira parte deste trabalho que a intitulada “Autobiografia do poeta”, de Manoel Camilo dos Santos” enquadra-se mais propriamente no gênero do autorretrato. A partir de formulações de Michel Beaujour (Autobiographie et autoportrait. Poétique, Paris , 32: 442-45B, 1977), é possível resumir os traços distintivos entre essas duas espécies do gênero confessional afirmando que a estrutura narrativa caracteriza a autobiografia, enquanto que a estrutura lógica ou temática indica o autorretrato.

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Observa-se na obra em estudo que o elemento narrativo ocorre em pequeno percentual. Na página 2, conta-nos o poeta o seu nascimento, a que não faltam, como nos velhos relatos heroicos, o vaticínio e a solidariedade da Natureza:

Nasci nesse dia lindo D’uma manhã radiante Aromática e elegante Quando o sol vinha subindo, Nasci alegre sorrindo Como nasce a alegria Enquanto uma voz dizia: - Vêem este recenascido? Há de ser um protegido De Deus e a Virgem Maria.

Depois aparecem referências às dificuldades com a saúde, às primeiras letras ministradas pelos pais e ao impulso de negociar. O poeta narra que, não resistindo à queda pelo comércio, antes de se tornar cantador e posteriormente
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editor ele adota a profissão de “almocreve ambulante”. Nessa condição, comercia pelas ruas rapadura, feijão, farinha, cordas e esteiras. Depois encontra os tios, que constituíram o “par maniqueu” responsável por suas desgraças: o segundo é o pai da moça com quem o protagonista não se casará por causa do primeiro. Devido a altercações e por insuflamento desse primeiro tio, rompe-se o noivado e o poeta vai morar em Campina, onde se casa mas de onde é depois obrigado a sair para ganhar a vida. É em João Pessoa que escolhe o profissão de cantador, conforme está relatado na página 19:

E foi um plano certeiro Eu ficar na Capital Porque ali afinal Adotei a cantoria Sem saber que a poesia Seria o meu ideal.

Mas é para Campina que volta depois, desenganado do ofício, dedicando-se à publicação das histórias que verseja. Posteriormente reside em Guarabira, onde funda a
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Folheteria Santos, que abandona devido a atritos conjugais. Por fim se estabelece definitivamente em Campina Grande.

Eis um sumário da narrativa, que só ocupa os dois primeiros capítulos. O restante da obra constitui-se de pequenas crônicas, textos em que prevalece o elemento reflexivo e lírico, revelando o eu do poeta por expedientes que não os narrativos. É devido a esse caráter compósito, que mescla história e depoimentos, crônicas e informações veiculadas como “resíduos da cultura”, que o termo “autorretrato” afigura-se mais exato do que “autobiografia”.

O poeta integra as peripécias da vida num quadro amplo onde cabem desde o julgamento de pessoas e instituições até as digressões filosóficas e morais, passando pela autoironia – como no trecho “Política Partidária, que aparece como um parêntese (assim mesmo denominado pelo autor):

- No ano de 1962, firmado na insistência da classe poética, estribado na confiança dos amigos e munido dos apoios do Presidente da República (Dr. Jânio Quadros) e do Governador (Dr. Pedro Gondim) candidatei-me a deputado Estadual pelo partido Republicano, sobre os números 1516. Fui muito bem votado mas meus votos não apareceram, foram camuflados, subornados, (levaram sumiço).
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Mais adiante, eis como justifica a amigos o sumiço dos votos:

Eu os respondia como ainda hoje respondo: - Isto foi a fraude, o suborno, a roubalheira dos oligarcas mandões que queriam continuar sendo os caudilhos intactos, inconstitucionalisando assim as eleições populares que é a via respiratória da vida nacional ... ( p.41)

A estruturação do livro em verso e prosa permite-nos constatar um fato curioso: a matéria factual, episódica, aparece em versos, submetida ao rigor da estrofação e da métrica. Os comentários líricos e mais pretensamente poéticos aparecem em prosa – prosa lírica e hiperbólica marcada por um acento simbolista e romântico, do qual pode ser exemplo a seguinte passagem (da crônica “Refletindo o passado”):

Imerso no sofrimento e na recordação do passado, exclamava: Ó fui traído! Fui ludibriado quando sonhava com um futuro auri-róseo!... E ser traído vilmente e ludibriado assim como eu fui é sentir um pezar que mutila a alma!... É observar com pavor, o futuro que se antolhava nacarado como arrebol, transformar-se em lórico (sic) nevoeiro!...(p.17)
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Concorre também para a percepção de que estamos diante de um autorretrato a referência às cantorias e às pelejas. Elas não aparecem como funções narrativas, mas antes como provas que confirmam o ofício escolhido. São importantes para aquilatar a dimensão social do poeta, mas sobretudo para dimensioná-lo entre os pares. Não é à toa que três quintos do livro compõem-se da transcrição de pelejas e cantorias, de que emergem o conhecimento, a destreza e a arte do improvisador.

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No estilo do autor revela-se o cruzamento de códigos morais e linguísticos. São facilmente reconhecíveis registros bíblicos e mitológicos, românticos e simbolistas. Os primeiros tendem a marcar o universo moral; os segundos, o universo da escrita. A Bíblia aparece como a grande matriz dos valores éticos que se introjetaram e parecem manter-se intocados no meio de onde o poeta provém. A mitologia funciona como acervo erudito, marca de um saber prestigiado e distante que se converte em arma nos entreveros das cantorias e das pelejas. Ambas se constituem num referencial básico, num eixo plasmador da visão de mundo do poeta.

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O autorretrato é uma escrita intertextual, amalgama traços de outros códigos com vistas a um novo sentido, sendo capaz de refletir as marcas de um temperamento também pela destreza na manipulação dos elementos linguísticos. Além da intertextualidade o poeta exercita a metalinguagem, conforme assinala Francisca Neuma Fechine Borges em artigo sobre a autobiografia no qual observa que, “paralela à função metapoética, aparece a preocupação com a função pragmática da obra literária.” (A função metapoética na literatura de cordel. Educação e Cultura, João Pessoa, 14:32-38, 1984).

Quanto a esse ponto, é significativa a passagem em que que o poeta se dispõe a abandonar o leixa-pren. No próprio discurso ele afirma esse desiderato, argumentando com as vantagens de “liberar” os primeiros versos das estrofes seguintes em relação aos últimos das anteriores. A reflexão metalinguística, ou metapoética, denota que ele conhece bem a técnica e os seus efeitos:

(Vou deixar a derradeira Rima de cada uma estrofe Para ver se assim não sofre Da outra a rima primeira, A rima solta é fagueira Com o pensamento livre É como o passado que vive Solto alegre saltitando De galho em galho pousando Sem ter ali quem o prive.) (pág. 5)
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Como um autorretrato, a “Autobiografia do poeta” deve então ser apreciada não só pelo que é explicitamente dado à leitura – no caso, a história da sua vida –, como também por todos os indícios que de alguma maneira concorrem para definir o perfil social e individual do poeta. Interessa particularmente a forma como ele se relaciona com as outras classes, a que corresponde um gosto literário dito culto e uma experiência de vida bem diferente da sua.

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