É possível que, a pedido de Petrônio Souto, as duas ladeiras que separam Alagoa Nova de Areia venham a ser transformadas em estrada lustro...



É possível que, a pedido de Petrônio Souto, as duas ladeiras que separam Alagoa Nova de Areia venham a ser transformadas em estrada lustrosa e lisa da marca João Azevedo. Para isso, meu prestígio e cocô de louro se equivalem. Desde Assis Camelo em sua primeira legislatura, ele no poder, fazendo carreira ao lado de Pedro Gondim, de João Agripino, de Ernani Sátiro, de Ivan Bichara e de Tarcísio Burity que fazemos fé nessa estrada, que só agora vem aparecer em linha verde no mais novo mapa do DER. Linha verde, nas legendas, quer dizer “implantada”. Dr. Carlos Pereira de Carvalho e Silva me avisara.

E aluguei um táxi a pretexto de tomar a benção de um tio velho da Rua do Tacho, em Alagoa Grande, e na despedida, depois de voltear céu acima a serra da Beatriz, quebrei à esquerda na descida, em Várzea Nova, contendo a alegria do menino e rapazote que eu havia deixado há mais de setenta anos molecando pelas bagaceiras de engenho que adoçavam o ar e aceleravam o coração até chegar à igrejinha de São Sebastião na entrada de Alagoa Nova. O vértice era a venda arrojada de seu Manuel Pereira, a meio caminho de Vitória, a engenhoca de meu pai, cuja ex-casa-grande se reduz hoje a um sótão enxameado de morcego.

Faz mais de oitenta anos, Petrônio, filho de Mário, sobrinho de Chico, meu sobrinho! Mais de 80, acredite! Vencida a ladeira que vinha lá de casa, parei para pedir água na janela de Manuel Pereira, subi na ponta dos pés para ver lá dentro, e dei com os olhos no pirão de domingo do major, ele na cabeça da mesa a medir força com a trunfa de couve, de repolho, o mocotó por cima, tudo boiando por cima do escaldado, levando-me da sede em que eu vinha à fome profunda, incurável. Sim, Petrônio, porque pirão daquele só se vê uma vez na vida e no mundo.

Não será com fome diferente que temos pedido esses 7 minutos de estrada em 100 anos de sacrifício para chegar às feiras, à escola, ao mercado, aos serviços e assistência oferecidos ou intercambiados com as matrizes da redondeza.

Muito sabidos, os governos nunca atentam para a renovação das terras brejeiras sucumbidas na crise feroz dos engenhos. Crise que transformou o senhor em simples fornecedor de cana para as usinas. Mas o que sucumbiu foi a rapadura; os espigões e vales profundos continuam argilosos e vermelhos viçando por qualquer produto que dependa de terra úmida, garanhona e de bons ventos. Tanto é assim que o vale do Capim Açu, até há pouco de fogo morto, já se recobre de novo plantio, safra nova, nova paisagem monopolizada pela maior produtora de aguardente da região. Enquanto a estrada não vem, onde eu não posso botar meu Clio, Luiz Magno, rico doutor, por conta própria, está forçando a entrada com seus tratores e colhedeiras. Quem morreu foi meu pai, a sua vizinhança, mas o vale continua a desafiar os seus sucessores.

Pela voz do Monsenhor Myriel Bienvenu, Bispo de Digne e personagem de Os Miseráveis, o escritor Victor Hugo mostra um pouco da sua faceta ...


Pela voz do Monsenhor Myriel Bienvenu, Bispo de Digne e personagem de Os Miseráveis, o escritor Victor Hugo mostra um pouco da sua faceta espiritualista e, diria eu, espírita, pois muitas são as passagens dentro desse monumental romance que apontam para esta convicção. Eis um dos exemplos do pensamento inquestionável desse caráter do romancista e poeta, em tradução nossa:

Hamurabi, fundador do Império Babilônico, criou o mais antigo código de leis escritas e o divulgou afirmando que o recebera do deus-sol Sham...


Hamurabi, fundador do Império Babilônico, criou o mais antigo código de leis escritas e o divulgou afirmando que o recebera do deus-sol Shamash, como pode ser visto no relevo que há no topo da estela, no Louvre. Os hebreus gostaram dessa justiça à base do olho por olho, dente por dente, da ideia de se manter a ordem pública transformando-se o superego de todo cidadão num agente secreto onisciente – Deus -, e criaram a história similar de que Moisés teria recebido o Decálogo diretamente das mãos de Jeová, no Sinai.



Explique-me a existência de ricos que se dizem cristãos, mesmo sabendo que no Evangelho está dito que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um deles entrar no reino dos céus. Alguns alegam justamente que houve confusão dos tradutores de Mateus 19.24, entre kámelos – camelo – e kámilos – corda, mais ainda assim a coisa é impossível. Já outros dizem que agulha era uma passagem estreita, nas muralhas, pelas quais passavam os cameleiros... com muuuita dificuldade, mas passavam…



Um dos monólogos mais famosos do mundo é o Ser ou Não Ser. Ao rever uma cena de filme mudo com a "mocinha" desmaiada numa das duas variantes de uma estrada de ferro, em que o trem vem vindo, "vi" o que Hamlet realmente sentiu, quando disse que se não temesse o inferno, cometeria o suicídio.



Digo e redigo que a lição do Calvário é precisa. Cristo morre entre o bom e o mau, todos dois...ladrões. "Quero ficar mais rico" - diz o da Direita. "Quero sair do miserè" - diz o da Esquerda. E o meio é um só: roubar o dinheiro sem dono, que é o do povo. Qual o problema? Falta de um sistema.



FREQUENTEMENTE ME SINTO EXILADO, AQUI EM JOÃO PESSOA, ONDE o Ariano Suassuna dizia que NÃO SE TROCA O OXENTE PELO OK DE NINGUÉM. Liga-se o rádio do carro, música americana, vai-se ao cinema,filme americano. anda-se nas ruas e só o que se vê é house, car, fashion, fit, hair, como se 99 % da população falasse fluentemente o inglês. Todo gringo, aqui, deve se sentir em casa.

(pensamentos avulsos)

O livro "A ridícula ideia de nunca mais te ver" - de Rosa Montero, escritora espanhola que adoro (A Louca da Casa), sentiu que a h...


O livro "A ridícula ideia de nunca mais te ver" - de Rosa Montero, escritora espanhola que adoro (A Louca da Casa), sentiu que a história de Marie Curie dialogava com a sua própria. Livro a respeito também da morte, mas sobretudo dos laços que nos unem ao extremo da vida.

Acrescentei a minha vida também a essas belas e originais histórias de mulheres sábias e poderosas. E que, antes e dolorosamente, também perderam seus maridos, sofreram, falaram sobre isso, e seguiram.

Sim, é preciso fazer algo com a morte. É preciso fazer algo com os mortos. Depositar flores. Falar com eles. Dizer que você os ama e que sempre os amou…

Gritar para o mundo. Escrever num livro… "que pena ter esquecido que você podia morrer, que eu podia te perder". Se tivesse essa consciência, eu teria te amado não mais, mas melhor.....

O luto é algo estranho… Mesmo que o tempo passe, a dor da perda, nos momentos em que surge, continua parecendo igualmente intensa. A dor é disparada com menos frequência e você pode lembrar seu morto sem sofrer. Mas quando a tristeza surge, e você não sabe muito bem por que surge, é a mesma dilaceração, a mesma brasa…

Quem sabe com o tempo a mordida amenize, ou não. Isso é algo de que ninguém fala; talvez seja um daqueles segredos que todos guardamos…

Talvez nós, viúvos, nos sintamos estranhos ou péssimos viúvos por continuarmos sentindo a mesma dor aguda depois de tanto tempo. Talvez tenhamos vergonha e pensemos que não soubemos nos "recuperar".

Mas já vou dizendo que não existe recuperação: não é possível voltar a ser quem você era. Existe a reinvenção, e não é algo ruim. Com sorte, pode ser que consiga se reinventar melhor do que antes.

Afinal de contas, agora você sabe mais…


Existem obras literárias que formam com a crítica e a história espécie de conjunto a que recorre o leitor, em seu esforço interpretativo, co...


Existem obras literárias que formam com a crítica e a história espécie de conjunto a que recorre o leitor, em seu esforço interpretativo, com férteis e valiosos resultados. Esse conjunto se constitui, por assim dizer, em etapas interdependentes e harmoniosas, de modo que as tantas possibilidades ou estágios de leitura complementam e aprofundam o entendimento da realidade da ficção.

Assim, na avaliação da crítica, a obra se desvela; enquanto a palavra da história, fundamentando-se em conclusões críticas reveladoras, recusa a exclusividade ou supremacia dos fatos externos. Não é que inexistam conflitos neste percurso. Pelo contrário. Eles cumprem aí seu papel, garantindo os confrontos, a pluralidade que somente enriquece o ângulo de visão. Assegurado o julgamento, na amplitude da perspectiva. Iluminados o texto e o leitor.



Na perspectiva de Goldmann, isto é, considerando a relação entre o romance moderno e a totalidade social, Alfredo Bosi propõe quatro tendências pelas quais é possível distribuir o romance brasileiro moderno: romance de tensão mínima, de tensão crítica, de tensão interiorizada e de tensão transfigurada. O segundo tipo define-se como aquele “em que a tensão atingiu ao nível da crítica, os fatos assumem significação menos "ingênua" e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz na pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda. Há menor proliferação de tipos secundários e pitorescos: as figuras são tratadas em seu nexo dinâmico com a paisagem e a realidade sócio-econômica (Vidas secas, São Bernardo, de Graciliano Ramos), e é dessa relação que nasce o enredo.



A Bagaceira - “um grito de justiça!”

Considerando-se os elementos integrantes da estrutura narrativa, torna-se inadmissível identificar com a seca a temática do livro de José Américo de Almeida. Quando isto acontece, é porque fica ignorado o outro lado da antítese: o meio físico e social que a bagaceira personifica. Em destaque a partir do título. Comprometendo-se com esta mutilação o entendimento da própria ideologia do romance.



Desmistificando a seca, o romance paraibano encontra sua força de denúncia na ironia do contraste estabelecido entre a "natureza privilegiada" do brejo e a degradação humana. Vinculando-se o estado degradado à estrutura moral e sócio-econômica que a bagaceira personifica. Nesta perspectiva, a funcionalidade da paisagem não deixa margem a que se confunda sua exuberância com o descritivismo de efeito meramente pitoresco. Pois, além de tornar mais chocante a miséria humana, "a verdura perene" desmascara a face desértica forjada como identificação do Nordeste, em decorrência da ação dos "exploradores das secas". Em tais circunstâncias, o paisagismo de A bagaceira se faz intencional recurso expressivo no sentido de superar a falsa imagem dos problemas da região, "cujas reais possibilidades de desenvolvimento passaram a ser subestimadas, falando-se na inevitabilidade de seu progressivo abandono".

(Excertos de Re-leitura de A Bagaceira)



Bússola meus instrumentos de navegação estão em meus próprios pés e ele navega como um pequeno barco indo de um lado a outro de ocea...



Bússola

meus instrumentos de navegação
estão em meus próprios pés

e ele navega como um pequeno barco
indo de um lado a outro de oceanos

sem enjoos, negando os eu te amos
indo para lá, indo para cá

ao sabor dos ventos, tempestades
ancoradas no fundo do lar

titanics que nunca, nunca afundam
mas ficam boiando no mar

meridiano magnético de corações
e dentes que só mastigam espinhas

imã de sensações que já já acontecerão
não se sabe em que porto

não se sabe em que seios, eu sei,
acontecerá o repouso do destino

terra à vista, dirão os piratas das cidades
mas onde (?), - logo ela fica invisível

logo a terra marulha também
vira uma espécie de tsnunami no olhar

mas como na parábola do elefante
não consigo ver além da minha tromba

viro torrão de sal no mar, não na xícara
e nem os mapas me localizam

“para onde vou (?)”
- “responde, poesia, musa que não sabe das flores!”.



Afluente

agora sou teu afluente
e tu mergulhas até o fundo em meus rasos

acaso não sabes daquelas cheias nos rios
que navegam minhas dores e arroubos?

e daquela noite, que peguei o barco
e cai no breu sem o bote salva-vida
sem o timão para me guiar para a claridade?

sou teu afluente, mas tu és meu escrínio profano
mesmo sem ter chorado a virgindade
que não perdeu comigo

tuas águas me tiram do Vale do Acor
porque é para teus líquidos que nado.



Uai!

ah, belo horizonte

de cheiros
no sotaque de seu mercado

nos reclames do vendedor de uais
dos torresmos
nos botecos, que nunca são iguais

bh
é terra de prosa
mas a poesia teima o ar.

(Do livro, ainda inédito, "Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa")

Música é fator de encantamento para todos, na diversidade de idades, épocas e acontecimentos. Para nós, médicos, que vivenciamos o sofriment...


Música é fator de encantamento para todos, na diversidade de idades, épocas e acontecimentos. Para nós, médicos, que vivenciamos o sofrimento alheio, representa não apenas a busca da beleza, mas também a conquista de tranquilidade, relaxamento e conforto.

Não me refiro aos mais dotados, compositores ou instrumentais, mas, aos que como eu são apenas capazes de sentir e de amar as peças musicais. Por isso, nessas palavras sintéticas, serei mais “pessoal”, trazendo aos colegas e ao público algo do que vive em meu espírito e envolve minhas atividades.

Sabemos que não são raros os exemplos de médicos aptos à análise profunda de obras célebres. Um dos quais permanece ainda muito viva na minha memória, é a do sempre saudoso e emblemático Mestre, Luiz V Décourt, emérito catedrático da faculdade de medicina da USP, que tive a honra e o privilégio de ter sido seu discípulo. Sua erudição e genialidade estão expressas no admirável estudo que fez do Quarteto nº 14, opus 131, de Beethoven, um dos mais importantes de um conjunto de obras magníficas para cordas.

Por outra, compreendemos certas limitações contemporâneas. Não há dúvida de que os progressos e as exigências da medicina moderna vêm acarretando nosso maior distanciamento, temporal e mental, das atividades musicais. E essa ocorrência é lamentável.

A estranha e conhecida frase de Stravinsky contida em sua autobiografia: “A música, por sua própria natureza, é impotente para expressar qualquer coisa”, deve ser entendida apenas como uma afronta a oponentes estéticos que atribuíram às peças musicais fins extramusicais.

Sabemos ainda que na Idade Média um programa de cultura geral abrangia o estudo de sete artes liberais, herdadas da Antiguidade. Elas eram agrupadas em dois conjuntos: o Trivium, abrangendo três artes literárias (gramática, retórica e didática) e o Quadrivium, ulterior, com quatro disciplinas “matemáticas” (aritmética, geometria, astronomia e teoria musical). Como acentuou o competente educador, Prof. Monroe, “A ciência musical abrange essencialmente as leis numéricas que regem a harmonia. O estudo da estrutura dos intervalos e da rítmica introduz os indivíduos no mundo da melodia".

E a magia permanece expressiva, alentadora, sem declínio. Perante o universo da música, a minha experiência na prática clínica da medicina autoriza-me a afirmar que ela modifica o ambiente que nos envolve e favorece a sensação de uma plenitude de vida. Essa sistemática sublime vem constituir ao médico um ambiente suave no seu mister diário dos consultórios, dando-lhe maior tranquilidade para formulação do diagnóstico e evidentemente amenizando o estado de inquietude, ansiedade e medos dos seus pacientes.


Há um ano que estou em nova morada. Mais perto do mar. Mais perto do parque. Mais perto. E mais longe também. Mais longe dos meus 35 anos na...


Há um ano que estou em nova morada. Mais perto do mar. Mais perto do parque. Mais perto. E mais longe também. Mais longe dos meus 35 anos na rua dos oceanos. Dos nascimentos e das mortes. Do fechamento de um ciclo. E aqui, da abertura de outros. E com as paredes em branco. E isso é bom. E difícil também. Mas, mais bom!

E me perguntam - “E aí Ana , já adaptada? Saudades da casa?” E para meu espanto , eu me adaptei na hora que vim com o caminhão de mudança. E na primeira noite. Aquele quarto parecia of my own há tempos. Claro que não achava nada, mas subjetivamente falando, aquele espaço, já era meu. Sou um animal que me aquieto logo.

E já nos primeiros dias, ouvi o som de uma flauta a tocar. Notei que alguém ensaiava o instrumento: dó ré mi fá sol....acordes repetitivos. E muitas horas do dia. Pensei , ah! Se fosse Vítor Diniz, o filho de Dodora, minha amiga, e que é flautista. Mas esse, mora alhures. O daqui é um desconhecido , o que torna tudo ainda mais intrigante. E o melhor lugar para esse deleite? o meu banheiro. Melhor acústica, proximidade com o vizinho de rua, e pronto. Estava feito a minha trilha sonora dos banhos e conversas no espelho. E o som da flauta, assim como o do violino, me remetem aos filmes – O Violinista no Telhado; O Violinista Que Veio de Longe (exibido recentemente na Fundação Casa José Américo); A Flauta Mágica...

Passei a observar os sons do novo endereço. A algazarra das crianças de férias que brincam na piscina do prédio ao lado; o silêncio de um gato, que fica estático na janela em frente ao meu quarto desnudo, tenho até a impressão de que me observa quando abro a janela; o baticum do apartamento de cima, que está se preparando para novo inquilino; meu despertador que insiste em me acordar na hora, mal sabe ele que ando com o sono diminuído e desperto antes; um cachorro que late, mas nem de longe parecido com aquele de O som ao Redor; o alarme da porta, agora com tudo sem chave e novas tecnologias, tem aquela musiquinha avisando que meu filho chegou . Ou saiu. Mas é o som da flauta que me eleva o espírito, me trás paz, e beleza no dia a dia.

E o ano começou com apreensões, perdas, novos desafios, e para mim em especial, com o ninho literalmente a ficar vazio. Sempre quis os filhos longe, para o mundo, “...mas o que importa o cérebro comparado com o coração?” Mrs Dalloway ouviu de Sally! Logo eu que prezo tanto a solidão e sou tão independente. Mas logo logo, quando chegar em casa, só terei o som da minha flauta mágica. Aquela que povoa os meus dias, e que me encanta dizendo: vai dar tudo certo! Acredite! E agradeço de ter esse som, doce e suave, a me embalar o tempo.

E o som da flauta me inspirou a escrever, a primeira crônica do ano.

Que venha janeiro! Estou (quase) pronta!

Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito p...



Revi, esta semana, o musical baseado em Os Miseráveis. Dessa segunda vez me pareceu melhor. Não estou dizendo que é um filme ruim, muito pelo contrário, trata-se de uma produção excelente, do ponto de vista do visual, do elenco e, sobretudo, do tratamento dado àquilo que é o cerne do romance de Victor Hugo: a injustiça, que se divide em cega observância e cumprimento da lei, cuja encarnação é o inspetor Javert, e em acumulação de riquezas, que fecha os olhos aos desvalidos e necessitados, ajudando a criar uma sociedade de submundo. O filme dirigido por Tom Hooper (UK/USA, 2012) é, portanto, uma obra a não ser esquecida.

O problema, me parece, está no gênero escolhido – musical – e no elenco, apesar de contar com estrelas bem conhecidas. Senti como muito artificial (artificial já é, per se) as falas transformadas em músicas, muitas delas difíceis de se identificar como uma melodia palatável. Ao lado disso, vemos que em determinados momentos soa, mais do que artificial, ridículo, ver Hugh Jakman e Russel Crowe tentando cantar. Por mais que eu tivesse boa vontade, não me furto de dizer que, em alguns momentos, fiquei com vergonha das interpretações. Assim como não consigo descolar Jean Valjean da figura de Gérard Depardieu, na excelente série da televisão francesa, de 2000, que depois virou filme, com seis horas de duração – para mim, a melhor versão do romance no cinema –, também não consigo apartar as figuras de Hackman e Crowell de Wolverine e do gladiador Maximus. O pecado na série da televisão francesa é John Malkovich interpretando Javert. Malkovich sempre interpreta a si mesmo. O melhor Javert, para mim, é Geoffrey Rush (EUA, 1998). Javert é duro, inflexível, só enxerga a lei. Não há nada para além na face da terra, além da lei. Victor Hugo deixa isto bem claro, no romance. Mas Javert não é sem emoções ou expressividade. Embora seja contido. No caso, de Crowell, como intérprete de Javert, temos um inspetor agressivo, em lugar de um homem de cálculo, um Javert que parte para uma disputa corporal com Jean Valjean, em lugar de deixar o trabalho sujo para seus subordinados, impondo-se pela sua estatura moral, embora equivocada e doentia.

No tocante ao personagem Thénardier, o problema é mais grave. Quem interpreta um dos maiores vilões e um dos seres mais vis e abjetos da literatura é Sacha Baron Cohen. Não preciso dizer mais nada... O diretor apostou na faceta menos importante de Thénardier, que é o histrionismo, interpretação muito fácil para Sacha Baron Cohen. A natureza de Thénardier é a de um homem sem humanidade, sem piedade, um monstro que explora as crianças dos outros, como fez com Cosette, e explora e abandona os seus filhos à própria sorte, cujo resultado é a morte dos ainda jovem Gavroche e Éponine, e o desaparecimento dos dois menores de 5 anos... O histrionismo do ator, que eu diria canastrice, esconde quem é, na realidade, Thénardier, cujo caráter se complementa, quando migra para a América e se tornar traficante de escravos.

Outra coisa que achei grave no musical é o fato de que, muito dificilmente, as pessoas que não conhecem o romance, entenderão o que realmente ali se passa. Há muitas lacunas, uma das principais causas é a transformação do diálogo em cenas cantadas. O cantar toma muito tempo; os diálogos são muito mais ágeis, além de soltar mais a intepretação dos atores. Apesar das 2 horas e 38 minutos do filme, as lacunas são enormes, que poderiam ser minimizadas se não fosse um musical. Só para dar um exemplo, de modo a não me alongar, um dos episódios mais tensos do romance, a fuga de Jean Valjean pelos esgotos, levando consigo Marius gravemente ferido, é transformado em uma cena rápida e pífia.

Plasticamente, no entanto, vejo como um dos melhores cenários, este do musical. E já que estamos falando de beleza, fico inconformado com as belas Cosettes – Virginie Ledoyen, na série francesa, e Amanda Seyfried, no musical – contracenando com o narigudo Enrico Lo Verso e o bocudo Eddie Redmayne, respectivamente. Cosette tendo sofrido muito nas mãos dos Thérnadier, mereceria um par mais bonito.


Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as ...



Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu de noite, antes de eu dormir e tomar conta do mundo em forma de sonho, se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.

Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapos e macérrimo. Terá futura tuberculose, se é que já não a tem.

No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.

Que se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas: lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego pois dinheiro não ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto terrivelmente inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos milhares de favelados pelas encostas acima. Observo em mim mesma as mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.

Hão de me perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de lesa-corpo e lesaalma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um pedacinho de folha, o que não impede que cada uma, encontrando uma fila de formigas que venha de direção oposta, pare para dizer alguma coisa às outras.

Li o livro célebre sobre as abelhas, e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da rainha-mãe. As abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei. Mas as formigas têm uma cintura muito fininha. Nela, pequena, como é, cabe todo um mundo que, se eu não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de organização, linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e provavelmente para sentimentos instintivos de amor-sentimento, já que falam. Tomei muita coisa das formigas quando era pequena, e agora, que eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança delas, eu sei porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores imperceptivelmente e lentamente se abrindo.

Só não encontrei ainda a quem prestar contas.

(2020, Ano de Centenário de Clarice Lispector)

"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propri...


"Não é o artista quem inventa o feio, o chocante. A dor da vida é que é assim, quando não idealizada. Se lembrarmos bem, não foi propriamente a figura humana que os olhos do mundo viram pisar no deserto da lua. Mas um pacote disforme, inflado, trôpego e desengonçado, no qual seria impossível identificar os traços de Gagarin ou de Armstrong. E ainda havia a pergunta: Para quê? Pois a corrida espacial, consumindo cifras incalculáveis, sempre recebeu críticas, pelo sacrifício que impunha aos deserdados habitantes da terra."



Não posso deixar de imaginar a reação do Mestre Juarez da Gama Batista, se pudesse presenciar minha ansiedade - timidez mesmo - no cuidado extremo de encontrar o ponto de equilíbrio para o trato com a sua produção intelectual. Um sorriso suave, complacente, os olhos quase fechados, a cabeça levemente inclinada para trás - o seu jeito afetuoso de subestimar minhas preocupações e inseguranças. Depois, as palavras de encorajamento, refletindo sempre uma expectativa maior que as minhas possibilidades. Tantos anos passados, e ainda me apóio na força desta lembrança.



É isto a festa de Centenário: um desafio à morte absoluta. A presunção de que, sem o lugar à mesa, mesmo assim, é possível a consubstanciação de uma outra forma de presença. Que não responde à premência da saudade e dos afetos. Mas é pesada substância que se impõe ao tempo, na dimensão da memória e da palavra. Uma festa cuja realização traz sempre o caráter de excepcionalidade. Pois, apenas o tempo não a justifica, nem tampouco a morte. Somente a vida.



(fragmentos sobre Zé Lins...)

"Quem não identifica, na realidade contemporânea, os milhões de “moleques Ricardos” excedentes, marginalizados pela revolução tecnológica e pela ideologia da globalização? Milhões de Ricardos para quem sobrou a última classe e nenhum destino."



"Usina coloca em discussão os aspectos da ecologia que constituem, hoje, preocupações mundiais. A devastação dos ecossistemas, da biodiversidade, a poluição das águas e a degradação dos homens. E em sua percepção o que sobressai é a visão de conjunto, a apreensão da problemática no vértice de suas implicações. Não se trata de salvar apenas as baleias ou o mico-leão-dourado ou as tartarugas marinhas.

A obra de Zelins antecipa a consciência crítica de hoje que preconiza uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade."



"Uma característica que diferencia a construção ficcional de José Lins do Rego é a densidade dramática que ele imprime aos seus personagens, sem distinção da classe social que representem. E um aspecto do tratamento dispensado à cultura popular, fonte original de sua criação, que não se deforma na superficialidade da abordagem folclórica. Elimina não apenas o distanciamento entre a cultura erudita e a popular mas, sobretudo, a hierarquia entre essas duas formas do saber."

(Excertos)


Eita pai, mas que saudade Dos nossos papos compridos Quando tu me convocavas E esquecias os motivos Eita pai são quatro anos E eu ch...



Eita pai, mas que saudade
Dos nossos papos compridos
Quando tu me convocavas
E esquecias os motivos

Eita pai são quatro anos
E eu cheio de novidade
A vida muda meus planos
Assusta a velocidade

Eita pai, sou vô agora!
Tu amarias Letícia
Fiquei mole com a notícia
Mas havias ido embora

Eita pai, tem os problemas
Sem ninguém pra dividir
Nos mais variados temas
Sinto falta de te ouvir

Eita pai, agora entendo
Que conselhos são em vão
Pois só se aprende vivendo
Sofrer por filho é ilusão


Eita pai, a vida é dura
Talvez a grande vitória
Esteja em contar a história
Feito tu de alma pura

Eita pai, mas é verdade
Que um dia serei saudade
E espero que assim sentida
De quem muito amou na vida

No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um d...



No período que antecede a alvorada do dia 06 de junho de 1832, Enjolras, um dos estudantes que integra a Sociedade Amigos do ABC, faz um discurso emocionado e vigoroso, para os revoltosos que decidiram enfrentar as forças monárquicas, tendo como bastião a barricada da rua de Chanvrerie (extinta em 1838, com a abertura da rua Rambuteau), que começava na rua Saint-Denis e terminava na rua Mondétour, no quarteirão dos Halles.

Enjolras, para Hugo, representava, com relação aos demais amigos, “a lógica da revolução”, “Antínoos furioso”, por sua beleza, juventude e virilidade (Os Miseráveis, Parte III, Livro IV, Capítulo I). O seu discurso, antes da carga das forças constitucionais, é uma despedida exaltando as virtudes da república e encarnando os seus princípios fundamentais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nada menos republicano do que a luta mesquinha pelo poder para eternização no poder; nada mais digno do ideal da RES PUBLICA do que a consciência do que se pode e deve fazer para se conseguir a síntese das soberanias representadas pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, numa Sociedade (Le point de d’intersection de toutes ces souverainetés qui s’agrègent s’appelle Société. – O ponto de interseção de todas estas soberanias que se agregam se chama Sociedade).

E como se constrói essa Sociedade? Vejamos os pressupostos de Enjolras. Sendo a Liberdade a soberania do homem sobre si mesmo; a Igualdade, a identidade de concessão para formar o direito comum, que cada um faz a todos; a Fraternidade, a proteção de todos a cada um, assim se faz a Sociedade. O básico, porém, é a Igualdade, que tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Óbvio, não? Mas os que se engalfinham pelo poder, para se manterem no poder, detestam essa obviedade, pois ela os retira do poder para concedê-lo a quem é seu verdadeiro dono – a população.
Diz Hugo:

“O direito ao alfabeto. É por aí que é preciso começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos (hoje, se fosse vivo, ele manteria o “imposta”...), é aí que reside a lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, ensino! Luz! Luz! Tudo vem da luz e para ela retorna” (Parte V, Livro I, Capítulo V).

Hugo via o século XIX como grande, mas acredita a felicidade estar no século XX, com a educação universal, quando não teríamos mais a temer a fome, a exploração, a prostituição, a miséria, o cadafalso, a espada e as batalhas... Para que isto possa acontecer, as revoluções são necessárias, mas a revolução que traga como resultado a civilização (“Révolution, mais civilisation”, Parte III, Livro IV, capítulo I), como pensava Combeferre, o filósofo da Sociedade dos Amigos do ABC.

Visionário, Hugo legou a receita de uma sociedade humana. Não contava ele que a mesquinhez política não pensa na humanidade, mas na individualidade e no egoísmo. Não teve o desprazer de ver as gerações futuras apoiando ditaduras e corrupções de um lado e de outro, se xingando mutuamente e defendendo, de maneira incondicional, os que manipulam o povo, para a sua satisfação pessoal e para seus projetos espúrios de política abjeta.Tolos, que se assemelham às zebras, antílopes, símios e gnus comemorando o nascimento do pequeno leão Simba, que um dia será seu predador.

Demorei muito para perceber que dentro daquela pessoa serena, disfarçada em calma, habitava uma alma inquieta, dotada de uma força indomáve...


Demorei muito para perceber que dentro daquela pessoa serena, disfarçada em calma, habitava uma alma inquieta, dotada de uma força indomável.

Teimosa...totalmente teimosa. Acreditava na transformação e principalmente, acreditava que todas as pessoas possuíam um potencial e buscava fazer desabrochar algo que ninguém esperava.

Sua trajetória começou trazendo crianças, portadoras de deficiência, para serem “trabalhadas” na nossa casa. Por ser professora, encontrou na alfabetização o primeiro passo de sua crença no possível. Em tempos onde essas crianças viviam guardadinhas em suas casas, ela foi pescando uma a uma, convencendo pais, convencendo pessoas da cidade até que se viu rodeada de crianças e adolescentes e acabou fundando a APAE no interior de Minas. A ela, agregaram-se profissionais que também confiaram na crença do possível e os ensinou a pensar sobre a vida de cada um daqueles seres que precisavam ser vistos com dignidade e carinho.

Não satisfeita e apesar de leiga, começou a estudar sobre o cérebro humano e vorazmente buscou métodos e padrões que poderiam estimular o potencial daqueles que apresentavam algum déficit motor ou intelectual.

Participou de congressos, visitou outras instituições, leu muito, pesquisou, mas o que mais importava era seu espirito desbravador e forte que dava esperanças a pais desenganados, de que seus filhos poderiam alçar novos horizontes.

Nunca contou o número de pessoas que passaram por ela durante mais de quatro décadas. Viu crianças engatinharem, andarem, correrem. Viu inúmeras aprenderem a balbuciar, falar, ler e escrever. Ensinou muitas delas a dar laço nos sapatos, a segurar a colher, escovar os próprios dentes. Testemunhou diversos pais chorarem ao ouvir a primeira palavra dita por um filho já crescido. E acolheu muitos e muitos beijos babados e abraços desajeitados cheiinhos de carinho de “seus meninos”.

Achou que ainda era pouco o que fazia e quis promover uma verdadeira integração. Criou um centro de estimulação da inteligência onde criancinhas sem deficiência brincavam aprendendo, além de conviverem num mesmo ambiente com outras “diferentes”. Não sei se entre elas alguma percebeu diferenças, pois conviviam alegres e pacificamente. Umas aprendendo com as outras.

Para comemorar seus sessenta anos, inventou uma viagem exótica. Vendeu o carro e gastou o dinheiro passando dois meses na Índia. Voltou com o cabelo faiscando de hena vermelha, com os olhos brilhando de felicidade e com a certeza de que existia um povo generoso, alegre e espontâneo, mesmo cercado de uma tremenda pobreza.

Depois que completou setenta anos, todos esperavam por sua aposentadoria, pelo tempo que ela dedicaria a si própria para andar na praia, talvez fazer tricô, assistir filmes... Pois foi quando ela iniciou uma nova fase de vida. Através de suas pesquisas e pela própria experiência pessoal de não deixar-se esmorecer, iniciou um trabalho de estímulo à memória voltado para idosos. Vinculou suas pesquisas anteriores a exercícios motores, com atividades específicas para que o envelhecimento das pessoas fosse dilatado e dotado de muito mais qualidade. Este trabalho cresceu e ela o vai desenvolvendo com vários “alunos” e o explanando através de palestras e encontros onde mostra que a idade não limita, adiciona.

Hoje, aos oitenta e três anos ela continua a desenvolver suas atividades, dirige por todo lado, caminha pela praia, pratica stand up paddle, mantém uma invejável vaidade, adora cinema, está sempre se atualizando em diversos assuntos, além de participar de congressos e encontros sobre o envelhecimento.

Teve quatro filhos e eu sou a mais velha deles. Assistir à trajetória da mamãe foi um privilégio e é uma grande lição de viver. Com ela aprendi que a generosidade, não só aquela que doa dinheiro e bens, mas aquela em que se usa inteligência, percepção e vontade de promover a evolução de outras pessoas é a verdadeira generosidade. Sei que é o emendar uma atividade na outra que a mantém lúcida e que ao viver essa história tão cheia de “tudo” ela carrega dentro de si um mundo bonito, feliz e plenamente realizado.

Esperamos, os quatro filhos, sete netos, dois bisnetos e mais uma bisneta próxima de nascer, que ela viva por muitos anos sendo nosso exemplo de amor, ponderação e energia.


Cristina Lugão Porcaro é bacharel em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora

A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus. Uma das frases que mais me impressionaram na a...



A passagem do ano nos torna filosóficos. Incita-nos a pensar na morte, no tempo, em Deus.

Uma das frases que mais me impressionaram na adolescência foi: “Nunca alcancei a graça do ateísmo perfeito”. Quem a escreveu foi Carlinhos Oliveira, cronista do Jornal do Brasil e boêmio carioca. Carlinhos morreu de pancreatite alcoólica e viveu torturado por angústias metafísicas. De dia negava Deus, de noite tinha medo do escuro e O chamava.

A frase dele me marcou por me abrir os olhos para esta verdade profunda: tanto a crença como a descrença em Deus independem da nossa vontade. Nesse delicado terreno do espírito não escolhemos, somos escolhidos. Assim como existe uma “graça” no sentido positivo, que afirma Deus, existe outra no sentido oposto, que O nega.

É tão difícil merecer a primeira como a segunda. Talvez para esta última se necessite até de mais sofrimento e grandeza. Ninguém risca Deus da vida sem substituir a confortável ilusão que ele representa por um senso ético profundo.

Talvez o drama de Carlinhos viesse de ele ainda perseguir tal senso e, ao mesmo tempo, não poder mais regredir às fantasias que lhe alimentavam a crença. Acabou órfão de Deus e de si mesmo.

A minha paixão por João Pessoa faz-me esperar o ano inteiro pela floração dos ipês. Eu os chamo de “nossa árvore de Natal”, pois marca par...



A minha paixão por João Pessoa faz-me esperar o ano inteiro pela floração dos ipês. Eu os chamo de “nossa árvore de Natal”, pois marca para mim a chegada da temporada natalina à nossa cidade.

Mas este ano quem chegou primeiro foi a decoração de Natal. Um primor: a cada ano nossos artistas conseguem superar a decoração do ano anterior.

Nos idos dos anos 1950 o fotógrafo José Lyra, exímio pintor e por muitos considerado o melhor retratista da Paraíba, compôs seu espetacular quadro A Ponta do Cabo Banco, da sua série Hetairas da Penedia. Tudo bem, mas quase todos os grandes pintores paraibanos deixaram as marcas de suas pinceladas naquele promontório que se destaca na nossa paisagem. E que se encontra ameaçado.

O que, então, distingue o quadro de Lyra dos demais? Um detalhe sui generis: a SENSUALIDADE da obra! Pois a falésia e seus acidentes são nada menos que MULHERES NUAS!

Isso mesmo: mulheres sentadas, deitadas, curvadas, em pé. Brancas, pretas, pardas, amarelas. Dezenas, centenas de mulheres nuas. Espetacular! Simplesmente genial.

Pois bem, seis décadas depois, e eis que a nossa querida cidade ganha uma decoração natalina igualmente suis generis. Pois além da imensa beleza decorativa que já é peculiar ao Natal de João Pessoa, as árvores ganharam linhas luminosas belíssimas, que lhe conferem uma sensualidade inusitada.

Venha conferir o que eu digo. Percorra a avenida Beira-Rio à noite. Passeie pela Lagoa e pela praça da Independência. Desça a avenida Epitácio Pessoa. Encontrará nas árvores lindas figuras abraçadas, suas formas sutilmente delineadas pelas luzinhas, formando casais comemorando a beleza da época. São dezenas, centenas de namorados luminosos e sinuosos, enlevados num abraço eletrônico sem fim.

Aguardei ansiosamente a florada dos ipês amarelos, que chegaram completando o clima de sensualidade da nossa cidade, vestindo-a numa belíssima lingèrie dourada. Um lindo presente de Natal!