A transmutação das “Ilusões Perdidas” (Honoré de Balzac, 1843) para as telas (em 2021) é uma experiência que deu certo porque respeita o texto original e dialoga bem com o imaginário das gerações informadas pelos audiovisuais. Entretanto, o seu grande mérito – para o melhor e para o pior — reside na sintonia com o espírito do tempo do sec. XXI, em que a vida
Para o cinéfilo poder voltar às salas de cinema após mais de dois anos de confinamento é uma experiência de júbilo e contentamento. E esse...
Duas ou três coisas sobre o filme 'Ilusões Perdidas' (2021)
A transmutação das “Ilusões Perdidas” (Honoré de Balzac, 1843) para as telas (em 2021) é uma experiência que deu certo porque respeita o texto original e dialoga bem com o imaginário das gerações informadas pelos audiovisuais. Entretanto, o seu grande mérito – para o melhor e para o pior — reside na sintonia com o espírito do tempo do sec. XXI, em que a vida
A morte é um acontecimento existencial! Finitude! Essa é uma palavra que minha mãe vinha usando muito nos últimos tempos. Quando fez 8...
Finitude e medicina paliativa
Finitude! Essa é uma palavra que minha mãe vinha usando muito nos últimos tempos. Quando fez 89 anos, sentindo-se indisposta, ouviu do médico, do alto do seu poder maior: “A senhora não tem nada. É a finitude!” E ela, bem contrariada com esse diagnóstico devastador, desde então, não parou mais de falar esse mantra.
Venho em contato com a morte desde a despedida do meu pai, há quase três décadas. De lá para cá, muitas perdas de tios, primos, amigos queridos. No caso do meu pai, lidei muito mal. Tinha 39 anos e a minha crise dos
Caminho pelas veredas literárias de Ariano Suassuna como um caçador de esmeraldas, ansioso por descobrir a pedra valiosa, a recolher ao ...
Ariano, o Imperador das Artes
Quem bebe no manancial de seus livros será enriquecido e alimentado pela sabedoria de personagens que brotam da terra castigada pelo Sol. Tudo é fonte de inspiração, terra iluminada pelas malacachetas.
O ser humano tem dificuldade de pensar ou agir por conta própria. Necessita de quem o oriente, sugira um roteiro segu...
'Influencers' e que tais
Não falta quem se aproveite do nosso natural desamparo para nos vender fórmulas ou manuais de conduta, nos quais estaria a chave para a conquista da felicidade. Só que esse caminho não existe fora de nós; deve ser construído por cada um. Nenhum guru conhece das pessoas o que elas intimamente são, por isso não pode apontar a ninguém o caminho que as faça felizes.
Fiquei em dúvida se escrevia ou não este texto. Às vezes acontece isso comigo. Alguns temas são delicados ou ambíguos, potencialmente cap...
O Brasil e o 'Touro de Ouro'
Ítaca, minha Ítaca, quando as horas se enchem de sombras e um nó se instala na minha garganta, lembro de ti. Nos dias em que as sereias en...
Nada se perde
"Que eu não me esqueça, mas que também não lembre o tempo todo" O primeiro adeus doloroso aconteceu quando deixei a cidade da ...
O Garoto do Adeus
Detesto o barulho, todas as formas de barulho, inclusive o onipresente ruído dos equipamentos eletrônicos. Não uso smartphone, ainda conve...
Não existo
Como dói essa saudade… Bem sabia que era assim. Mas a falta de costume ou da plena consciência faz a gente indiferente ao raia...
De gratidão nutrido
Foi sempre cheio esse consultório. É o consultório do dr. Azzouz, na rua Augusto dos Anjos. Há de ser mesmo de raiz oriental esse dr. Azzo...
A rua de Augusto
Tomei uma decisão de não me meter em polêmicas, porque, já há algum tempo, as considero, além de infrutíferas, desgastantes. Não sei o que...
Um livro hermético?
O sentimento religioso provavelmente surgiu nos tempos primitivos da humanidade, a princípio baseado no medo do desconhecido: o medo da no...
Ave Maria no morro
Transcorria julho de 1984 quando a leitura de um artigo do amigo Hélio Zenaide me fazia cair o queixo. Então Secretário de Comunicação da ...
Purgando pecados no Sertão
Artigo do próprio punho, na página de opinião do Jornal, a fim de que não restasse dúvida quanto à história e sua autoria. Mesmo assim, liguei em busca da confirmação daquilo que eu acabava de ler.
Embora muitos considerem o concretismo uma retomada do espírito vanguardista de 22, o fato é qu...
Quintana entre o humor e a ironia
Na origem, um galo muito metido a besta achava que o sol só nascia porque ele cantava. Toda madrugada ele cacarejava e só depois o sol nas...
Nossos galos de Chantecler
Aqui na Paraíba eu já conheci uns quantos “galos” de Chantecler.
O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação...
A refeição
As cabaças, abastecidas no porão da represa com algumas dezenas de preciosos litros d’água, penduradas no pau de aroeira roliço, atravessado no trapézio nu, retesado e caloso, balouçavam obedientes à cadência marcial das passadas,
Na cintura, um retraço de cordame segurando os calções de um madapolão mole, furta-cor de tão gasto, fazia barreira ao suor que lavava, abundante, o torso habituado aos grandes esforços. Ainda que sem um grama sequer nas costas, ninguém alcançaria a marcha forçada daquele conjunto de pesos e contrapesos, equilibrado como uma equação newtoniana, flutuando em meio à quentura que emanava de toda parte, a quentura sólida do semiárido. O embornal de couro de boi, presente de Padrinho, com a cinta larga atravessando, desde o ombro esquerdo, todo o tórax, até à cintura, completava os paramentos.
Um pouco mais atrás, num trote ritmado, o cachorro vira-lata pedrês, miúdo e arrepiado, arquejante, acompanhava os passos do dono com desinteressada atenção. Conhecia cada seixo, cada lagartixa, cada pardal daquele caminho de roça. As nuances aromáticas das suas urinadas frenéticas voluteavam em ondas familiares, demarcando o território e imprimindo ao trajeto toda a segurança de que o grupo necessitava. Não havia o menor sinal de perigo.
Logo que os olhares se cruzaram, os dentes do homem, de uma brancura polar, emergiram num largo e genuíno sorriso, como se um copo de água fresca se lhe apresentasse alguns metros adiante. O cão, farejando o ar e agitando a cauda descarnada, apressou o passo, dando pequenos rodeios, levantando mais corpúsculos da terra cor de ouro. A procissão chegara ao auge nesse encontro e o menino, ágil que nem filhote de jaguatirica, levantou-se de um pulo e correu para a tropa, mirando o embornal.
— Trouxeste para a gente o quê?
O homem parou lentamente, deu um longo suspiro e, dobrando os joelhos com o corpo ereto, descarregou no chão os recipientes, pousando sobre estes, cuidadosamente, a trave de madeira:
— Eu já disse que essa encosta escorrega e quando vosmecê cuidar... tchibum! Está nadando com as piabas! – disse, rindo ainda mais e entregando o embornal ao menino, enquanto o cachorro, excitado, soltava breves latidos esganiçados.
O menino desenlaçou, ávido, a presilha e vasculhou o conteúdo do bisaco com o rosto quase enfiado na abertura, sorvendo o cheiro de couro curtido. Retirou de lá um embrulho quadrado, coberto com folha de bananeira atada com sisal, e outro maior, irregular, cujo conteúdo achava-se enrolado num pano fino, manchado. Um odre de pelica, fechado por uma rolha, continha a água de beber.
— Rolinha assada ou nambu? Será uma costela ou um pernil? Fala logo! — perguntou o menino, sem abrir os invólucros, mas com a saliva escorrendo das comissuras dos lábios.
— Vamos comer, seu cabrito guloso, é melhor do que adivinhar! — Respondeu o homem com ternura, recolocando a trave de madeira nos ombros e amarrando as cabaças nos cipós.
Seguido pelo cão, descendo a parede no ângulo oposto à lâmina do açude, com juvenil habilidade a despeito dos compridos anos de vida rural, o homem tomou o sentido de um umbuzeiro centenário,
Na sombra fresca e acolhedora, a matilha acomodada se preparou para a refeição: o homem passou as mãos, à guisa de limpeza, pelo solo do espaço preferido, bem sombreado, e sentou-se com os membros inferiores recolhidos de um só lado do corpo, parecendo absolutamente relaxado. O menino, impaciente, abancou-se também, cruzando as pernas sob si. E o animal, depois de enxotar os patos com canina autoridade, deitou-se ao redor, como que fechando o círculo, cônscio da importância da sua presença naquele convescote.
Depois de breve ablução das mãos e rostos com a água retirada do odre, o primeiro pacote foi ritualisticamente aberto sobre o relvado, mostrando uma rapadura média, cor de argila, cujo cheiro marcante, agridoce, do melaço que lhe originara acendeu as narinas dos comensais, fazendo o menino arregalar os olhos e o cachorro esticar as orelhas. Como se não bastasse, torresmos de castanha de caju assada sobressaiam aqui e ali da superfície suculenta do petisco de cana-de-açúcar.
Sem tocar na rapadura, o homem desenrolou cautelosamente o segundo embrulho, como quem manuseia uma preciosidade. Para decepção do menino, revelou-se uma pasta disforme esverdeada, da qual minava um líquido amarelo. A repulsa fê-lo recuar, arrastando-se para trás sobre os joelhos dobrados.
— Que é isso?
— Como lá essa coisa de jeito nenhum! — zangou-se o menino, já fazendo menção de levantar-se.
— Ouça-me — retrucou gentilmente o homem - Está na hora de vosmecê aprender que os animais de Deus são nossos irmãos e que existem outras maneiras de matar a fome sem precisar deitar rês nem criação. Matute aí vosmecê o que os bichinhos sentem quando a marreta avoa no toutiço deles, derribando-os sem dó nem piedade. Ou quando a pedra de funda abre a cabecinha da codorniz, quebra a asa da arribaçã... E ainda o peixinho endoidecendo pelo ar, com o anzol espetado no céu da boca?
Fez-se silêncio e um bem-te-vi voejou por sobre o trio, pousando alguns metros adiante, numa galha abaixada da árvore. Pouco mais, seu par fez o mesmo percurso, e ambos, em plateia, quedaram-se a assistir a conversa. Os patos retornaram em fila indiana, acomodando-se perto do tronco e longe do cachorro. Uma vaca mugiu alto no horizonte, decerto exortando sua cria. O sol atingira o zênite e o dossel do generoso vegetal ofertava abrigo a todas as criaturas, livrando-as da inclemência do astro-rei no seu clímax. O homem prosseguiu.
— Esperei com paciência vosmecê sair do mimo e ficar mais taludo para lhe dizer isto: não se come carne de bicho vivo nenhum. Os ovinhos e o leite, desde que não careça do sacrifício ao ente e à ninhada, pode ser; tem a hora de recolhê-los sem prejuízo. Mas matar para comer? Não se pode... Não nos é permitido... — e meneou a cabeça, com uma manifestação pia nos olhos cansados.
Contrariando os sentidos e mercê do afeto e da confiança que nutria pelo homem, o menino juntou os dedos indicador e médio, raspou a pasta, levando-a imediatamente à boca.