E sta mulher não existiu? Existiu, sim, leitor descrente. Vou te contar, em ligeiras pinceladas, um pouco de sua maravilhosa vida. Ela nasce...

Esta mulher não existiu

Esta mulher não existiu? Existiu, sim, leitor descrente. Vou te contar, em ligeiras pinceladas, um pouco de sua maravilhosa vida. Ela nasceu numa cidade pequena. Ela que adoraria viver numa grande metrópole. Sempre foi seu sonho. Casou-se duas vezes. Do primeiro marido, teve dois filhos. O primeiro morreu quando, ao abrir a porta, de madrugada, recebeu no peito uma pancada de vento. Dele só teve dois filhos. O primeiro era o poeta Eudes Barros. E ela descobriu que ele era poeta quando, no jardim, gritou para mãe: “Mamãe, olhe uma flor chorando”... O diagnóstico da mãe funcionou.

Ela fez coisas extraordinárias: Fez um de seus partos, sozinha. Quando a parteira chegou, bastou cortar o umbigo do menino. Candidatou-se a um concurso público federal de telegrafista e tirou primeiro lugar, isto numa época em que era censurada a mulher empregada fora de casa. O preconceito da época era mulher dentro de casa para tratar do marido e cuidar dos filhos. Ela fez concurso para os Correios e Telégrafos e se saiu muito bem. Nasceu na cidadezinha de Canafístula, que terminou se chamando Caldas Brandão, mudança que ela não gostou. Canafístula é o nome de uma planta.

Foi a primeira mulher a cortar o cabelo comprido, muito usado na época, e passou a usá-lo curto. Veio à Capital, gostou da novidade, e novidade era com ela, ei-la em plena moda. Todas as mulheres de Alagoa Nova depois a imitaram. Imitaram dona Piinha. Sim, este era o seu nome, Pia, nome que ela dizia ser “de rainha”.

Não demorou muito e dona Piinha veio morar em João Pessoa, onde se deu muito bem e onde teve a segunda filha, Iracema.
Como filho, não sei como agradecer a ela tudo que sou e tudo o que ela fez por mim. Fui seu caçula por muito tempo. Cem por cento mulher das letras, ela era uma exímia decifradora de charadas e palavras cruzadas. E o de que ela gostava mesmo era de contar histórias para eu ouvir. Seu repertório era rico.

Saiu deste mundo com mais de cem anos. Fumou muito quando era mocinha, mas largou o vício logo. Dizia que o fumo sujava os dedos e os pulmões. Regime: comia pouco e nunca dispensou o suco de cenoura com laranja e beterraba, toda manhã.

Admirável era o seu otimismo. Sempre com o sorriso nos lábios. Um dia, chegou a estirar a língua para o espelho, que não lhe mostrava uma boa aparência.

Otimista por natureza, sempre risonha, ela não gostava daqueles velhos relaxados, que não se cuidavam. Daí costumava dizer: “Velhice quer trato”.

E ela caprichava no rosto, no vestido, no cabelo, no seu saudável modo de ser. Tristeza demorava pouco em seu espírito.
Outra coisa: Dona Pia não conhecia o medo. Sempre confiante na vida, sempre ouvindo os grandes mestres da música, muitas vezes vi lágrimas molhando o seu rosto enrugado. Música, sobretudo a de Chopin e Beethoven.

Maria Pia foi tudo na minha vida. Mãe, amiga, professora, uma mulher de muita fé. Não tinha medo da vida, não tinha medo da morte. Só tinha medo, e muito medo, era de rato. Avistava um rato, e ei-la trepada numa cadeira.

Minha mãe não foi mãe. Foi um anjo. Um anjo caído do céu por descuido...

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