Um susto. Um olhar. Sem timidez. Percorro a vista como quem já conhece o território. Mas, por outros caminhos. Não conheço o nome das...

Sobrevivente do desejo

Um susto. Um olhar. Sem timidez. Percorro a vista como quem já conhece o território. Mas, por outros caminhos. Não conheço o nome das partes. É um corpo que habita eras. É bela e triste, como o amor. Tem desejo. Uma voz com um timbre macio. Clama por defloração. É agora. É sim. Como foi que me deixei vestir por uma ilusória imortalidade?

O que farei com essa avidez que não sossega? Despejarei de mim esta noite em minhas próprias mãos? Em minhas mãos serenas criaturas que não se criaram como a natureza quis que fosse. O lábio ressecado, mas a língua suculenta e pulsante à espera de outros lábios que não superiores, mas de tal superioridade que parecem sempre sorrir quando me aproximo. Pouco sei. Talvez saiba pelo instinto que a carne pronuncia. O peso sentido vem da ebulição dos sentidos.

Francesco Hayez
Esses atos inerentes a qualquer ser que já se sentiu são incontestáveis. Quantos já se reprimiram por não aceitar o que o corpo exige? Ando devagar para não perder o charme. Cuidado. Há muitas projeções no caminho. Alguém me ponha a dormir sem esconder minha profanidade. Que ninguém se assuste.

O Estranho mora perto. As entranhas se reconhecem. Aprenda a ler o meu poema mudo, a poesia ancorada em mim. Meio prosa. A saudade é nua e só amada veste. Sabes que só esse manto de amor tiveste. É preciso se reinventar. Fazer do novo, novo. Não dê gelo em quem te esquenta. Volta. Sem revolta. Perdi o siso. Perdi o sorriso. Deixe-me ser piegas e não me culpe por isso.

William Dyce
“Até que a morte nos separe” – que ironia. A vida nos separou. Alguém disse que amor eterno só existe se não for consumado. Fui consumido. Lembro-me da tua máquina de costura. Percorreste meu corpo com a mesma delicadeza e destreza com a qual inserias a linha na agulha. Naquele tempo as distâncias eram maiores e estas contribuíram para a nossa aproximação. A saudade era gestada. Hoje a qualquer ânsia tudo se aborta.

Lembra-se daquele dia, no coreto, em que puseste tuas lágrimas em meu colo? Fiquei excitado com a tua fragilidade. A vontade que tive foi de penetrá-la para substituir teu pranto por teu gozo. Fui egoísta. Pus a minha cabeça em teus seios para me acolheres. Senti-me impotente para te acalentar, então inverti os papéis para que tua vida conferisse maior sentido. Por que não fizeste como eu? Fiz da minha tristeza matéria para criatividade. Também há horas em que quero sair daqui – retirar as lentes que me fazem ver o indesejado. Porém me lembro de que desejos maiores me movem. Ponho-te na memória e faço dessa história um relato de um sobrevivente.

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