Parece que todo esforço empreendido por nós, porcos, em trazer um pouco de limpeza e de higiene para as pobres aldeias do passado neolítico desses nossos atuais (e de muito tempo) carrascos, terminaram por nos colocar, no conceito desses mesmos verdugos, em perene débito até com as noções mais elementares de asseio e higiene pessoal.
Falo de uma das maiores traições de que se conhece, entre consorciados do reino animal. Essa, dos homens para com os porcos, uma punhalada particularmente dolorosa para quem, como nós, de certa maneira tínhamos entendido que nosso papel naquela aliança estratégica era o de manter a higiene local, vasculhando nos lixões que eles depositavam no espaço posterior aos roçados em torno da aldeia.
George Morland
Os humanos não tardaram a perceber que os excrementos que deixávamos espalhados, depois dessas investidas noturnas pelos aterros em volta, traziam fertilidade para suas roças, e aqui aproveitamos para dissipar outro possível conceito errado de que a aldeia humana nasceu antes dos roçados. Foi justamente o contrário.
Acontece que estas duas obras, a agricultura e a aldeia, se complementaram num processo que havia de ser mediado, sempre, por alguma fonte d’água, na melhor das hipótese um rio, uma fonte de abastecimento vital para as existências da aldeia e das plantas nela cultivadas.
George Morland
Durante todo aquele tempo em que nossa presença, como uma sombra, gozava ainda de certo prestígio na aldeia, nunca esquecemos de sermos gratos aos nossos consorciados, cuja só aparente generosidade, apesar de tudo, nos dispensava de grande parte do esforço, muitas vezes doloroso de escarafunchar o chão em busca de raízes e tubérculos, quando muito do apreciado por nosso paladar era agora encontrado aos montes, na superfície.
De forma que podíamos economizar um pouco de focinho, àquela altura com a ponta já bem achatada pelos milênios dedicados a uma dieta basicamente vegetal, num mundo selvagem cuja supremacia ninguém perdera tempo ainda em discutir, haja visto a cúpula no topo da cadeia alimentar se fazer representar por carnívoros impiedosos como o leopardo e o tigre, para quem o odor adocicado da carne dos suínos, farejado à distância, se constituía num irrecusável manjar a ser imediata e implacavelmente perseguido.
George Morland
Essas e outras doenças de natureza crônica haveriam de nos ficar como eterno pagamento pelo benefício levado por nós em prol da limpa das aldeias, mesmo que a princípio nada soubéssemos dos dilemas fitossanitários a que estavam os referidos aldeões expostos, quando, à noite, baixando o volume dos roncos, vagávamos pelos arredores da aldeia, sempre na busca de algum lixo atirado por lá.
Mas um tempo chegou em que ninguém mais estranhava que um outro dos nossos, às vezes inadvertidamente, ou levado por simples curiosidade, cruzasse o limite das plantações e acabasse penetrando por espaços sagrados da aldeia; farejasse pelas portas
Paulus Potter
Éramos já então semidomesticados, mas em nós pulsava ainda os apelos de uma vida livre e selvática, lembranças de um tempo ainda recente quando podíamos correr livres por campos e florestas, e quase nenhum outro animal dispunha de velocidade suficiente para nos predar mediante corrida a céu aberto.
Tínhamos então, de tempos primevos, o que hoje - de forma bem simplificada - se entende por um corpo malhado. Mais que isto, os rigores da competição desenfreada entre as espécies, acirrada sobretudo pela era pós-glacial, quando os grandes predadores tiveram de perder tamanho diante da debâncle (debacle ou débâcle” dos grandes almoços (dos grandes herbívoros, como o mamute), fizeram com que a barra pesasse pra nós suínos, animais até então considerados de pequeno porte. Daí a nossa destreza na luta pela vida.
George Morland
Mas não foi por acaso que, um tempo depois de efetuada e consolidada aquela aproximação com a aldeia humana, percebemos que os grandes dentes que nos subiam pelas laterais do focinho para ganhar espaço acima de nossa cabeça, tinham começado a atrofiar-se, e nosso temperamento, antes irascível e temido por todos, começara a abrandar.
A convivência com os humanos, cujo aspecto agressivo há muito cedera em prol de uma característica mais reflexiva, decididamente, parecia nos haver contaminado.
Tínhamos, sem saber, inaugurado um novo tipo de espécie biológica. Um tipo duplo, digamos assim. Pelo menos capaz de encerrar em si, e em simultâneo, duas idades históricas.
Mykola Kuznetsov
E como acontece até hoje com nós, porcos domésticos vivendo em pocilgas e que, por uma razão qualquer, logrem fugir de volta para o mato: em pouco tempo vemos recuperado o status de javali selvagem, em seu formato característico de um torpedo. Muitas teorias podem ser criadas na tentativa de explicar um fenômeno raro e estranho como esse, mas por ora, pastemos um pouco, antes de continuarmos nosso relato.