Talvez ele não tenha sido um gênio, mas que foi brilhante, foi. E esse brilho, virtude de poucos, foi sua graça e sua perdição, como ...

O triste fim de Oswald de Andrade

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Talvez ele não tenha sido um gênio, mas que foi brilhante, foi. E esse brilho, virtude de poucos, foi sua graça e sua perdição, como aliás costuma acontecer com os que se diferenciam dos mortais comuns por excesso de inteligência. Oswald era brilhante e queria brilhar perante a sociedade brasileira de seu tempo; não se conformava em se saber talentoso, mas desejava que seu talento fosse reconhecido pelos outros. Perseguiu sem pudores a notoriedade, fez inimigos diversos e amargou reveses fatais. É o que mostra, com detalhes, a recente biografia que o escritor Lira Neto
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lhe dedicou (Oswald de Andrade – Mau selvagem, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2025).

Oswald queria ser muitas coisas. Queria ser tudo, na verdade. Era milionário (por herança paterna) e posava de socialista. Era empresário e escrevia poemas. Espinafrava a tradição e candidatou-se à Academia Brasileira de Letras. Combatia Getúlio e foi pedir um emprego ao adversário. Queria ser aceito e reconhecido, mas brigava com todo mundo. E por aí vai. Esses paradoxos até podiam ter algum charme, pareciam decorrer da pretensa genialidade do homem. Mas cobravam um preço que não era barato. No caso, o brilho deu muito trabalho e muita dor de cabeça a quem brilhava. Carlos Lacerda foi outro que, como escritor, sacrificou-se pelo brilho na política e na mundanidade. Mário de Andrade o advertiu quanto a esse perigo, mas ele fez que não ouviu. E terminou deixando uma obra literária aquém do que poderia, se bem que o seu A casa do meu avô, sozinho, vale por muitos. E não por coincidência este livro, se não me engano o derradeiro de sua lavra, foi escrito quando
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José Lins do Rego (1901—1957) ▪ Acervo: Funesc / Gov. Paraíba (adapt.)
ele já estava afastado da política, em pleno ostracismo, já com a precoce morte rondando.

Uma de suas brigas foi com o nosso afável José Lins do Rego, por ele chamado provocativamente de “o coronel Lula do romance nacional”. Vejam só. O referido coronel, como sabe o leitor, é personagem marcante de Fogo Morto, senhor de engenho decadente mas ainda orgulhoso de sua condição. Por que então a comparação com Zé Lins? O professor Antonio Arnoni Prado, da Unicamp, em seu saboroso Cenário com Retratos – Esboços e Perfis (Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2015), acha que o duelo entre os dois escritores pode se dever ao velho embate entre os adeptos do Manifesto paulistano de 1922 e o Regionalista recifense de 1926, ambos advogando para si a primazia sobre o autêntico modernismo brasileiro. Como se vê, mais uma briga sem futuro para Oswald, pois o paraibano, não importa sua filiação ideológica ou literária, é, definitivamente, consagrado como um dos maiores nomes das letras brasileiras de todos os tempos, posição não alcançada, pelo menos até agora, pelo inquieto paulista.

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Oswald de Andrade (21 anos) ▪ Unicamp
Enquanto teve dinheiro, Oswald viveu à larga. Mulheres e filhos, teve muitas e muitos. Viajava à Europa como quem vai ali pertinho, numa época em que essas viagens eram para poucos. Não só gastava – esbanjava. E assim foi consumindo o que herdara do pai, latifundiário urbano numa São Paulo em plena expansão. E, como diz o ditado popular, se de onde se tira não se põe, logo o monte diminui, a fortuna foi minguando e as dívidas crescendo, até que seus últimos dias foram vividos – e sofridos – em quase miséria. E com o doloroso acréscimo da falta de saúde.

Numa de suas derradeiras entrevistas, concedida a Radha Abramo, ele confessou: “Estou cansado e doente”. A jornalista observou em seu texto: “Quando Oswald olha, não guarda o ar leonino e a postura agressiva de antes. Hoje, mantém o olhar quase parado, quase fixo, enquanto fala”. O antigo leão estava de fato já sem dentes. Tinha se tornado menos que uma ovelha de olhos mansos.

Em seu Diário Confessional, numa das entradas dos últimos tempos, escreveu: “Não gosto de reler este caderno porque choro. Não há dinheiro para pagar o colégio de Antonieta Marília”. Tinha chegado a esse ponto. E o seu biógrafo acrescenta:
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Oswald de Andrade (58 anos) ▪ Acervo: M. Andrade
“Como não tinha mais automóvel e não podia se dar ao luxo de pegar táxis, andava pela cidade a pé ou de ônibus nas visitas sistemáticas que fazia para inspecionar os terrenos postos à venda”. Imagine-se o quanto tudo isso não deve ter lhe custado em termos físicos e psicológicos. O ex-dono de carros de luxo pendurado num ônibus lotado. O ex-esbanjador sem poder pegar um táxi. Se o sujeito sempre viveu assim, é mais fácil suportar; mas tendo sido rico, a despeito de seu declarado socialismo, não é brincadeira. O sujeito sofre. Não só com as restrições materiais, mas principalmente com o sentimento de derrota. Este, a meu ver, o mal que de fato o matou.

Para completar, as novas gerações já se rebelavam contra o modernismo de 1922, do qual Oswald tinha sido um dos cardeais. Era a chamada Geração de 45 que chegava, sem muito respeito pelos que a antecederam. Isso deve ter ferido fundo seu orgulho intelectual, pois ameaçava até o reconhecimento póstumo de que se achava credor. Se o presente ia mal e o futuro se anunciava pior, o que restava a quem pensava ter feito tanto pela cultura brasileira?

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Oswald de Andrade (1890—1954), poeta, escritor, advogado, ensaísta e dramaturgo paulistano, aos 64 anos.
Falecido em 22 de outubro de 1954, pobre, doente e esquecido, demoraria anos para o reconhecimento do escritor e para que a sua obra tivesse novas reedições. Lembra Lira Neto que passados dez anos da morte de Oswald seus livros continuavam fora de catálogo. A partir daí, a ressurreição começou aos poucos, podendo-se afirmar que o “maldito” tem crescido muito nos anos mais recentes.

O destino de Oswald de Andrade lembra, entre outros, o de Lima Barreto, mas apenas em parte. Ambos morreram em vida e tiveram vida após a morte. Acontece muito entre os artistas e os escritores. Van Gogh é outro exemplo. São poucos os que, ainda vivos, sentem o gosto da posteridade, como Machado de Assis, com o beijo reverencial que o jovem Astrogildo Pereira depositou em sua mão de moribundo.

Certamente ainda é cedo para se firmar o juízo definitivo sobre a contribuição de Oswald à literatura brasileira. Seu julgamento ainda está em processo. Mas, ao que tudo indica, ele terá o seu lugar no panteão das letras tupiniquins. Sua “antropofagia”, suas rebeldias, suas brigas e suas dores não terão sido em vão.

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