Não apenas me disseram onde eu encontraria aquele infeliz, mas, ainda, que mesa de bar ocupava. Éramos jovens quando, felicíssimo, com um riso de orelha a orelha, ele me fez conhecer a posterior razão do seu padecimento: uma morena bonita com olhos de onça. Ninguém, antes nem depois dela, causou-me tão má impressão no ato das apresentações.
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Máquina de consensos, sim, porque nunca vi uma briga decorrente do volume, ou de escolhas e repetições daqueles discos, uns bolachões com doze canções, seis de cada lado. Aquilo tinha um nome: “LP”, sigla em inglês para “Long Play”. Riam, crianças. Doze músicas num mesmo prato já foi coisa de longa duração. Respeitem, contudo, a dor dos analógicos.
Ali entrei quando o mineiro Altemar Dutra cantava aos quatro ventos os versos do cearense Evaldo Gouveia: “Sentimental eu sou, eu sou demais. Eu sei que sou assim porque assim ela me faz”. Não sei quantas vezes aquela plateia à beira da embriaguez havia escutado aquilo, pacientemente.
É de Millôr Fernandes de quem sempre me lembro quando ponho minhas vistas e meus temores em textos e imagens das guerras modernas, estas que, agorinha mesmo, põem a humanidade em risco sério de extermínio. Millôr, na fase áurea da boemia, disse algo assim: “Nunca vi uma guerra provocada por um bando de bêbados”. As guerras, de fato, são coisas dos homens de bem, dos que pregam em palanques e tribunas a decência, a correção, a justiça.
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Servi-me, cutuquei-o três vezes sem que ele reagisse. Em seguida, bati com força no tampo da mesa a ponto de chamar a atenção de um casal vizinho. Ele abriu os olhos e, tomado pela surpresa, ergueu-se para um abraço caloroso, sincero, precisado.
“Ninguém, a não ser você, conseguirá trazer meu menino para casa. Faça isso”, suplicara por minha ajuda, momentos antes, Dona Marta, tão logo eu punha os pés no seu alpendre. Aquela mãe sofrida apelava, então, para a amizade que estreitamos eu e seu filho. Ela não tinha dúvida de que o primogênito fora vítima de catimbó, de feitiçaria braba. Garantiu: “A condenada coou o café dele na calcinha”.
Acontece que o cotidiano e os problemas disso decorrentes não afastaram meu amigo daquela por quem sofria nem das namoradas antes tidas. Coração mole, fidelíssimo, extremamente pegajoso, ele se apaixonava à toa. As meninas começavam a dele fugir, rapidamente, antes de maiores convivências.
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Mas a moça dos olhos de onça o despedaçou. Afastava-se quando lhe dava na telha e o chamava de volta nas precisões de um cartão bancário cuja senha possuía. Ele apenas percebeu o tamanho da encrenca em que se metera quando a vendedora da loja perguntou-lhe se havia gostado da camisa e da calça compradas com pagamento em parcelas pela portadora ocasional do tal cartão. “Aquele conjunto é a sua cara”, comentou a lojista. Era a cara de Fernando, nome fictício como os demais, por razões óbvias, que agora dou a um amigo em comum.
O coração mole adoeceu. Isolou-se por uns dias e, depois disso, passou a beber sem medo do volume nem da ressaca. Naquela tarde, ao cabo de duas doses, eu o convidei para um barzinho novo, recém-instalado nas redondezas. Desviei o caminho e o pus na cama. Entreguei-o aos bons cuidados de Dona Marta.
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