A escritora, acadêmica e professora Ângela Bezerra de Castro teve a oportunidade de ser recebida pelo ilustre escritor e político par...

Ângela, José Américo e A Bagaceira

jose americo almeida releitura bagaceira angela bezerra castro
A escritora, acadêmica e professora Ângela Bezerra de Castro teve a oportunidade de ser recebida pelo ilustre escritor e político paraibano José Américo de Almeida apenas uma vez, no entanto aquele momento foi suficiente para imprimir nas suas memórias e coração um presente inesquecível.

Longe de imaginar que, um dia, viria escrever a Releitura da obra A Bagaceira. O fato é que, já naquele momento, a então jovem teve a oportunidade de conversar com o escritor sobre o livro, como se fora um prenúncio de se debruçar sobre aquela obra, um dia, e ser premiada num Concurso Literário.

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Ângela Bezerra de Castro
Como “nem tudo são flores”, a honraria foi marcada por "injustiças e humilhações", segundo ela. Estes ‘dissabores’ farão parte de um capítulo de suas Memórias. A surpresa da informação despertou o meu faro jornalístico. Não poderia perder tamanha oportunidade e pedi para antecipar para mim o que considerei um furo de reportagem nos bastidores daquela obra. Ângela aceitou, agradeço "o furo" e segue a entrevista:

▪️ Ângela, em que tempo você tomou conhecimento sobre a existência de José Américo? 

Admiro José Américo desde criança, influenciada pelo entusiasmo de minha avó. Era 1950, ele e Argemiro de Figueiredo disputavam o governo da Paraíba. Meu avô apoiava Argemiro e minha avó contestava, achava absurdo não votar num escritor. E dava a maior ênfase a essa qualidade, acrescentando que ninguém era maior do que um romancista.

Minha avó dava ao saber o máximo valor. E teve grande influência em minha formação.

Miriam B. Carneiro da Cunha, José Leão Carneiro da Cunha e Josefa Ferreira Costa
(mãe e avós de Ângela)
Muito cedo li A Bagaceira, motivada a encontrar a grandeza de que ela falava. Reli, depois, no primeiro ano do Curso Clássico. Essa, orientada por professor Gibson, me levou a outro nível de compreensão. Quando iniciei o Curso de Letras, já tinha conhecimento de toda a obra escrita pelo grande paraibano e também de muitos textos críticos a seu respeito.

▪️Como foi seu primeiro contato com nosso ilustre José Américo de Almeida e quando aconteceu?

Meu professor era Juarez da Gama Batista. Nome que reverencio para sempre. Ele ficou admirado com minha dedicação a José Américo, nome que ele venerava. Então me perguntou: você conhece o grande homem? Não conhecia. Aí marcou uma visita, para que eu o conhecesse. Foi um fim de tarde que, para mim, parecia um sonho, tão inesperada era a realidade.

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Juarez da Gama Batista A União
▪️Alguma curiosidade que lhe chamou atenção e quais foram suas impressões?

O Ministro nos recebeu no terraço da frente, onde estavam organizadas três cadeiras. Nos sentamos, depois de apresentados, ele no meio. Então os dois começaram a conversar, enquanto eu escutava, com a maior emoção. De repente, professor Juarez me ordena: vamos, fale, diga alguma coisa!

Conto isso no discurso que fiz para receber o “Prêmio José Américo de Literatura”. Falei, sem escutar o som de minha própria voz:

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- Ministro, não consigo ler A Bagaceira, conforme o entendimento da Crítica. Acho que seu livro se diminui, visto como um romance da seca.

Ele se aproximou mais de mim, no gesto de se mover mais à frente da cadeira. Surpreso e atencioso respondeu:

- É? Pois confie na sua intuição.

Ali nascia a “Releitura de A Bagaceira”. Primeiro foi um curso de Aperfeiçoamento que ministrei. Logo depois escrevi minhas aulas, para concorrer ao prêmio. Foi a única vez em que estive com o grande paraibano.

▪️Como foi sua experiência como autora da Releitura de A Bagaceira?

A ‘Releitura de A Bagaceira’ foi escrita numa hora muito sofrida da minha vida. Acabara de perder meu avô-pai e estava sem chão. Precisava me apegar a algo que me sustentasse. Então vi, no jornal, o anúncio do concurso. Foi minha tábua de salvação. Tinha ministrado o curso de Especialização, com todas as minhas ideias que não repetiam a leitura crítica estabelecida. Lembrei do comentário amigo de Neroaldo: estás com um ensaio pronto para ser escrito. Foi o que ele me disse, quando concluí o curso. Então, resolvi concorrer. Tinha quatro meses de prazo. E assim foi, trabalhei de forma obstinada, sem permitir que nada me interrompesse.

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Neroaldo Pontes e Ângela Bezerra de Castro
A cada capítulo concluído, eu mostrava a Neroaldo e a outro colega que julgava amigo. O retorno era sempre positivo e fui crescendo em motivação. Concluído o trabalho, achei que teria chance. E, dentro do prazo estabelecido, fiz a inscrição, com o pseudônimo. Um dia, Luiz Augusto Crispim me ligou, anunciando uma grande surpresa para mim. Jamais imaginei que seria sobre o Concurso Prêmio José Américo de Literatura. Então ele falou: “seu ensaio sobre A Bagaceira foi primeiro lugar no concurso”. E eu indaguei: como você soube? Não foi notificado nada. Ele, tão feliz quanto eu me sentia naquele instante, revelou que integrara a Comissão Julgadora, representando a APL, da qual era presidente.

Sem dúvida, foi um dos momentos mais significativos da minha vida intelectual. Seria editada pela José Olympio e teria meu nome associado ao grande José Américo e a seu famoso romance.

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Ângela Bezerra de Castro e Luiz Augusto Crispim
Tornado público o resultado do prêmio, fiquei esperando a iniciativa da FCJA (Fundação Casa de José Américo) que devia tratar da publicação, com a José Olympio. Mas o tempo foi passando, eu ouvindo justificativas, até que resolvi tomar uma atitude. O jornalista Severino Ramos era o secretário de Cultura. Fiz um ofício para ele, pedindo que interferisse, no sentido de garantir a publicação do meu ensaio. Imediatamente ele fez uma reunião na FCJA e tudo ficou resolvido. Essa foi a primeira dificuldade que teria de vencer. 

▪️Prossiga, Ângela 

Depois, vieram as solenidades do Centenário. A primeira, em Areia. Segui de ônibus, com vários outros convidados, incluindo o pessoal da casa. Em Areia, a solenidade foi no Teatro. Então, sofri a primeira decepção. A mesa de autoridades ignorou minha presença e a existência do prêmio. A seguir, foi um almoço para as autoridades, organizado por um padre engajado com a Cultura. Fui excluída e encaminhada a almoçar com servidores, no Quebra. Sentindo a humilhação, minha mãe passou mal e foi um vexame.

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Teatro Minerva (Areia-PB) Egberto Araújo
A seguir, aconteceu a solenidade para entrega do prêmio em dinheiro e lançamento do livro, na FCJA. Eu estava tão magoada que, no meu discurso, pedi desculpas pela “interferência desastrada” de haver concorrido. Também fui irônica, constatando a ausência da UFPB.

Na hora de autografar o livro, perguntei a uma funcionária onde seria. Esta teve a ousadia de me apontar uma mesa e me mandar puxar a cadeira. Reagi, como devia, e comecei a autografar em pé, até que pessoas vieram contornar a situação. Outro absurdo é que não foi feita uma só fotografia minha. O fotógrafo, com certeza, foi orientado para agir assim. Não tenho nenhum registro dessa solenidade.

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Outra solenidade foi no Rio de Janeiro, na José Olympio. Por parte da Editora, recebi o tratamento merecido. Estava marcada uma entrevista com Márcia Peltier, na Rede Globo, e estava preparada uma linda mesa para os autógrafos. Mas houve, primeiro, a solenidade do Centenário. Muitas autoridades presentes, inclusive professores meus, do Doutorado. O governador do Estado foi orador da ocasião e, nesse discurso, também não fui incluída, como se não estivesse presente, porque era vencedora do Concurso do Centenário. Diante disso, recusei os cinco minutos que me foram reservados para um pronunciamento.

Foi tão notável o tratamento injustificável destinado a mim, que professor Afrânio Coutinho me perguntou: ‘Ângela, esse governador é seu inimigo?’ O general, filho de José Américo não se dirigiu a mim. Alguém teria dito que eu era 'comunista'. Somente a filha e o bisneto compareceram aos autógrafos.

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Ângela Bezerra com Selda M. de Almeida (filha de J. Américo), Edilberto Coutinho e Lourdes Souza ▪️ Sessão de autógrafos na Editora José Olympio (RJ)
▪️A que você atribui tudo isso? 

Na verdade, o Concurso foi aberto para que outra pessoa vencesse. Com um trabalho que já estava pronto e que eu cito, no meu ensaio, indicando uma lacuna. Quando resolvi concorrer, atrapalhei os planos e sofri as consequências.

▪️E tudo terminou por aí?

Não, tem mais. No ano do Centenário de José Américo, Sarney era o Presidente da República e Celso Furtado, Ministro da Cultura. O presidente Sarney já pertencia à ABL (Academia Brasileira de Letras) e ocupava a cadeira que José Américo deixara vaga, com sua morte. Então decidiram visitar a FCJA, em homenagem ao centenário do autor de A Bagaceira.  Foi uma iniciativa amplamente divulgada. A FCJA organizou a solenidade e fez os convites especiais para os que seriam autorizados a entrar no Museu, em razão do protocolo exigido pela presença do Presidente da República. Eu me considerava merecedora dessa deferência, com minha contribuição ao Centenário. Mas também fui excluída dessa vez.

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Marly e José Sarney Arquivo Nacional
Estava em casa muito revoltada com a injustiça e resolvida a não comparecer, ficando do lado de fora. Mas minha mãe, com sua altivez, me obrigou a ir, dizendo: “lá é seu lugar“.  Entrei e fiquei no pátio externo, com as demais pessoas. De repente, Dona Marli Sarney abriu a porta e, dirigindo-se ao público, perguntou por mim. O presidente queria falar comigo, ´a moça que escreveu o ensaio premiado´. Ele e Dr Ivan Bichara tinham vindo no mesmo vôo, conversando sobre a ‘Releitura’.  Eu havia remetido para os dois a cópia, pré-publicação, assim que venci o Concurso.

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Ângela Bezerra de Castro
O presidente Sarney e Dr Ivan Bichara não estavam envenenados contra mim, a exemplo de outros personagens e autoridades. Tinham lido meu ensaio, apoiaram minhas críticas e me trataram com respeito e admiração. Autografei o livro para os dois e também para o Ministro Celso Furtado. Tive a oportunidade de dizer-lhe que no último capítulo do meu ensaio, A dialética da degradação, tinha sido inspirado em A dialética do subdesenvolvimento, livro admirado pelos universitários do meu tempo. Então escrevi a dedicatória: “Ao professor Celso Furtado, muito mais que Ministro, ídolo de minha juventude universitária, na luta contra o subdesenvolvimento. Esse encontro me redimiu de todas as humilhações a que a mediocridade me submeteu.

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Celso Furtado Arquivo Nacional
▪️Agora, Ângela, voltando ao aspecto pessoal, como você definiria José Américo, na polivalência da literatura (escritor, cronista, poeta...), além do aspecto político. 

Definir alguém é um grande desafio. Ainda mais um homem da altura de José Américo. Como romancista e escritor, acho que está definido na Releitura. 

Como político, ele mesmo se definiu, nos livros de memórias, em que trata do assunto. Tinha posições claras que estão expostas em discursos e entrevistas. Lembro bem da Manchete em 64: ”Se a Revolução não nos deu todo o bem, pelo menos afastou todo o mal”. Era um estadista, defendia o bem comum, de reputação ilibada, como se comprova pela simplicidade em que viveu. Um perfil de que o Brasil se ressente, sobretudo pela integridade, pela cultura e pela inteligência.

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José Américo de Almeida FCJA
▪️José Américo tem muitas frases marcantes. Há alguma que lhe chama atenção?

Ele abre A Bagaceira com frases que compõem um Prefácio. Destaco “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto, é não ter o que comer na terra de Canaã". Essa é a síntese do Romance anunciador de outra visão para a narrativa brasileira. Mas a frase que mais admiro está em O Boqueirão, e me traz a lembrança do mestre Juarez Batista: 'Saber viver é evitar os casos perdidos, os fatos consumados'.

"Li e reli, com renovada alegria, sua Releitura de A Bagaceira, que abre novas perspectivas para a compreensão do romance de José Américo de Almeida. Digo que seu livro abre perspectivas novas e me explico: você deixou de lado os clichês, os elogios repetidos, a classificação de "marco", as restrições superficiais e renitentes,
para mostrar que estamos diante de um romance, bem escrito, bem trabalhado, é verdade, mas uma "descrição de caracteres", uma história de vidas humanas transfiguradas pela imaginação...

Classifica seu estudo de polêmico, mas essa flama, esse calor, essa vibração é que dão o toque de vida à sua interpretação, sem amarrá-la à sedução da crítica impressionista.

Como José Américo gostaria de ter lido o seu estudo pelo que tem de novo, de inteligente!"
(Ivan Bichara Sobreira - Ex-Governador da Paraíba)

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  1. José Mário Espínola24/8/25 04:08

    A entrevista de Fátima Farias revela muito sobre a personalidade e o caráter de nossa escritora Ângela Bezerra.
    Incapaz de cometer subterfúgios, nos faz sentirmos a sua indignação com as injustiças que sofreu, o que me deixou igualmente indignado, conhecedor do seu caráter que eu sou.
    Parabenizo Fátima Farias pela reportagem.
    E Ângela Bezerra, pela sua obra e o reconhecimento dela!

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  2. Fátima, você, entrevistando Gonzaga e agora a professora Ângela, está se tornando uma especialista na arte de colher depoimentos importantes para a cultura paraibana. Continue este trabalho e em breve você terá um precioso livro para publicar. Há muita gente boa entre nós a merecer uma entrevista. Fiquei surpreso com as revelações de sua entrevistada sobre o boicote que sofreu. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  3. Sou grata aos amigos José Mário Espínola e Gil Messias pelos parabéns e incentivos.

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