Entrega os originais e recua para a poltrona da sala, de onde observa Cori — gordo e fumando feito um desesperado — folheá-los. De lá o ...

O Retoque (Parte 1)

Entrega os originais e recua para a poltrona da sala, de onde observa Cori — gordo e fumando feito um desesperado — folheá-los. De lá o vê deter-se rapidamente em trecho escolhido ao acaso, para logo prosseguir, passando páginas. Assiste um voo rasante sobre nova escolha aleatória, logo deixada de lado. Por instantes, há essa impressão segura de quem sabe o que busca, e que, um instante depois, vai parecer irresoluto. Ei-lo agora voltando, acelerando, até fixar-se naquele ponto anterior do calhamaço.

Mas o editor Coriolano Torquato Lins vai ter de esperar pelo próximo final de semana para mais um de seus extravasamentos do tipo etílico-verborrágico, para só então soltar a língua e declarar publicamente que um daqueles contos lhe deixara uma impressão — aguda, intolerável — de caco cerâmico forçando espaço entre ladrilhos perfeitos.

Bar de Apolônio. Sábado à tarde. Músicos, poetas, apologistas da poesia popular — de modo geral, os chamados ‘culturais’ — acodem em bom número ao local. Terão começado a aparecer aí por volta do meio-dia, ainda esparsamente,
para o encontro que já se afigura como tradição do bairro, e que haverá de se estender noite adentro.

É que lá se vão dezoito, vinte anos, desde que a pequena trupe de músicos, tangida — dizem —, pelo acaso, deu — surpresa – com o ar telúrico do ambiente, e logo sentou para beber, cantar e bater nas mesas pela primeira vez, seguida pela meia dúzia de simpatizantes que se agregou àquela tarde festiva.

Que nesse tempo o negócio prosperou é indiscutível, e se, mesmo discretamente, a música e a poesia continuam a dar as cartas por ali, palmas então para Apolônio, que, já naquele início, e a partir daqueles mesmos fregueses, baixara decreto sobre o tipo de assunto que podia, ou devia, prevalecer em seu ambiente, e definia assim — ainda nos cueiros — o perfil do seu negócio.

É provável que tivesse, já àquela altura, percebido nos assuntos de Cultura uma alternativa potencialmente menos conflituosa que a do trinômio futebol-política-religião, e tenha, consequentemente, feito a escolha que julgou necessária para manter a casa longe de polêmicas reconhecidamente furibundas. Mas, para maus-tratos da regra, um tema surgido recentemente estremece agora as mesas do bar.

Para tanto, bastou novo freguês sugerir que essa concentração dos sábados fosse o possível embrião de um novo bloco carnavalesco. Se o que disse foi uma previsão, a rápida repercussão emprestou-lhe ares de objetiva tendência, e caso venha a se confirmar, a tradição local estará ameaçada.

Mas não há ali — por enquanto — restrição a novos frequentadores, qualquer um pode chegar e buscar a sua roda de bate-papo, e pouco importa se alheio à uma ideia dominante por lá: a de que a cultura atravessa mais um de seus penosos momentos de indigência.

Dificilmente, ali, o novo cliente deixará de escutar de outro já assíduo, que vai longe o tempo dos bons eventos de Arte na cidade, sendo mais provável ouvi-lo lamentar-se pela infrequência de boas atrações — show de música, encenação teatral, etc. — que possam sugar a atenção dessa geração mais veterana que frequenta a casa (e que segue envelhecendo — cada vez mais — desatenta às novas tendências).

Quanto a isto, não há muito o que fazer. Talvez alguns deles, alimentem no íntimo a suspeita de que um restinho da verdadeira Arte continue a resistir por aí, em nichos isolados, onde fervilhe talvez em silêncio, trame em segredo, e, a qualquer grato momento, possa surpreender. Mas, enquanto nada parecido acontece, as tardes de sábado têm transcorrido em clima invariavelmente ameno, propício à ingestão das bebidas e tira-gostos de sempre.

De qualquer modo, uma doutrina é tanto mais forte quanto mais extenso seu rosário de mártires, tidos na conta de vultos exemplares, e, neste quesito, o Bar de Apolônio — munido de seleto quanto diversificado panteão — tem se professado dentro da regra. Os santos ali venerados confluem biograficamente para a recorrente circunstância de ter tido, em algum momento de suas vidas — e sem nenhuma exceção —, que arribar da terrinha em busca de exíguo lugar ao sol.

Nomes até mais recentes como os de Antonio Nóbrega, Lucy Alves e o grafiteiro Schiko, integram a sonoridade da casa e fazem o orgulho dos frequentadores do bar de Apolônio. Citados na ponta da língua, eles se somam aos mais antigos para compor o perfil hagiológico da casa. Não à toa, bafeja por ali clima quase uniforme de indisfarçável jactância cultural. Sensação facilmente compartilhável pela horda considerável dos que ali se acreditam nascidos em lugar prodigiosamente dotado de munificência artística. Certeza que se renova a cada vez que algum visitante notório, de passagem pela cidade, aceita dar uma esticada até o local para conhecer o autopropalado reduto de artistas e amantes da Cultura.

No correr do dia a dia, porém, e apesar de tantas e tão aparentes certezas, no mais das vezes as coisas acabam se resumindo, mesmo, a pequeno incêndio saído de querela mais comezinha, a uma ou outra labaredazinha que se deixou atiçar pela vaidade, mas que, no entanto, os interesse mais de perto, e lhes forneça, por assim dizer, a devida razão de uma boa acolhida, poupados que estarão aí de surpresa qualquer, incômoda.

Coriolano Torquato Lins — astro local — começou classudo como sempre. Explicava ele as razões de interditar um conto. Se a plateia é atenta, ele avançará, certamente, embalado pela cerveja.

Obedece, quem sabe, à antiga necessidade de empregar verniz erudito ao ganha-pão que é, talvez, um dos mais complicados da praça. Colar nele o emplastro dessa cultura literária há séculos irradiada de um cosmopolitismo distante. Eflúvios da urbe por ele captados em dias já remotos — tempos meninos — e sendo perfeitamente possível que a frágil casca de preceitos com que desde sempre tem revestido sua postura (habitual quanto vetusta) de editor, já andasse — por aqueles idos mesmos — caducando.

Mas, naquele conto, desperta primeiramente sua atenção o tamanho reduzido — pouco mais de lauda, para depois perceber que não faz, como seria legítimo esperar, nenhuma menção à rua com nome habitual de prócer imperial, oligarca, ou mártir de 1817. A descrição é de época, e por isso chegando com primitiva de- nominação do tipo Rua da Palmeira, da Areia, Vento, etc. Fora surpreendido pelo jogo de memória se deslocando para cenário de cor mais desfalecente, ao embicar, decididamente, para passado além. Mas o estilo — da crônica densa, excessivamente poética — o espanta: mesmo mantendo a rotina de perambular pelo passado da cidade e do escritor (ainda sentado ali de frente, e pacientemente esperando o que ele tem a dizer), não faz — não desta vez — qualquer alusão a sexo.

Escolha de editor, no geral, atrela-se a algum mandamento de mercado, daí Coriolano não considerar a pequena variação formal ali detectada, como uma riqueza a mais para o novo livro que, juntos, planejam publicar. Sem chance que tal desdobramento estético seja visto como fruto da pluralidade de recursos do autor. Pelo menos, ninguém poderá dizer ter visto Cori alguma vez na defesa de algo parecido.

Ao perceber no estilo do escritor indício qualquer de identificação com o público, fará o que pode para que ele explore e amplie tal liame. Para evitar que se disperse em nova edição lançando ao público algum texto tipo balão de ensaio. Gosta de dizer que autor que se preza não arreda pé de temática e estilo estabelecidos (?) para leitores sequenciais. Não se deve mexer nos aspectos de uma produção literária, à qual o deus mercado — não se sabe por quais tortuosos caminhos — confinou em gênero. Mexer nesses pilares é fazer a obra ruir. Para escritor em situação dessas, sempre segundo ele, não resta alternativa afora aprimorar o estilo. Enxugá-lo.

Mas, para Coriolano o problema estava não apenas colocado, mas resolvido: naqueles originais recebidos, excetuando-se um único conto, a característica mais conhecida do escritor mantivera-se. Rememorar pulsões sexuais da juventude fora sempre sua pegada digital mais inconfundível, apesar do quanto as reinvente — ou invente — no presente, através do olhar um tanto sublimado da maturidade. Até aquele momento, como um todo, a obra desse autor bem poderia ser vista como uma espécie de eterno retorno hormonal.

Se um conto – um único – destoava, não tinha outro jeito, havia-se de eliminá-lo.

O escritor é Edilson Limeira. Nome ainda vastamente desconhecido, mas que já conhecera dias piores. Se encontrou um editor, conhecido na cidade (e que, ao menos, se dá ao trabalho de uma leitura super rápida sobre o que se pretende publicar), o mérito é todo dele, e se deve, provavelmente, a uma de suas qualidades literárias mais notáveis: a Tenacidade. Embora o quesito Beleza Pessoal (dote literário bastante festejado em dias de hoje) o desfavoreça.

Carece de boa estampa física, e um temperamento mais firme até que não lhe viria mal. Mas, em que pese continuar a — pessoalmente — fornecer a impressão algo parva dos tolhidos por introversão severa,
alguém que parece conhecê-lo de perto (e/ou a sua obra), notou-o de ânimo — ultimamente — bem melhorado.

Afinal, disse essa pessoa (foi mais ou menos o que ela disse — num indisfarçável tom de desagravo —, diante do desdém e gracejo de uma colega) que um lançamento de livro de Edilson já pode dispensar o precário favor de certos biombos de feira, ou daquelas claustrofóbicas gôndolas do sebo literário do centro — voltando ele a ver-se ali cercado de livros poeirentos, e certamente constrangido entre a meia dúzia de gatos pingados. Nariz levemente empinado, a leitora (?!) não deixou barato — Talvez te interesse saber – Disse ela — Que o lançamento de seu último livro teve, se bem que pela primeira vez, vá lá, buffet de marca, com salgadinho e uísque para 100 pessoas...

Envolvimentos pessoais à parte, a atual presença dele na cena cultural, talvez não seja mais que pálido esboço da que pode vir a ser sua possível identidade futura — melhor, mais aprimorada... ou, quem sabe (invertendo-se as bolas), tenha Edilson atingido já todo seu potencial de carreira, obtido o máximo que a literatura poderia lhe dar, em troca do recebido... quem poderá saber...

Não se percebe no ar, por enquanto, qualquer indicativo de que Edilson possa chegar um dia a arrebanhar prêmio literário de expressão. E chega a ser improvável que possa ainda conquistar legiões de leitores no país em que se lê pouquíssimo, passando, assim, a extrair dessa remotíssima possibilidade uma mais nova e libertária condição profissional, capaz de compensá-lo, à altura ou em parte, por sua dedicação ao ofício durante todos esses anos em que, para contrabalançar a falta de horizontes, é de se supor — para escritor de lenta maturação, feito ele — que não tenha contado com maiores estímulos além do prazer e do consolo das pequenas, insignificantes conquistas diárias de aprendizado, que só os mais perseverantes vão con- seguir, em alguma medida de importância, ajuntar no decorrer do tempo.

Diante de sua magreza sem remissão, vem a suspeita de que o excesso de zelo profissional talvez o tenha privado de maiores cuidados consigo. Adivinha-se nele certo desânimo de carnes — prolongando-se em alguém frágil, mas ainda ereto e rígido, cuja estrutura quebradiça, no entanto, explicasse talvez a lentidão de movimentos (ou o contrário).

O andar é cauteloso, e se prolonga na fala quase sumida, e até (?) na calva ‘de teto’, constantemente disfarçada sob um desfalecido boné de pano. E tem o exagero dos óculos, cujas lentes grandes e escuras em demasia, vão além de simples proteção aos olhos, chegando a camuflá-los totalmente.

Até onde se sabe, Edilson é pessoa íntegra, embora sua figura remeta — curiosa e involuntariamente remeta — a certo clima de impostura. Uma percepção certamente errônea, mas comumente retroalimentada, ora pela visão dos dois grampos de varal que, em dado momento, teve ele o inusitado cuidado de colocar nas pernas da calça (na parte de trás, disfarçadamente, sobre os calcanhares), para suprir o embainhado que, provavelmente — lá no lugar onde vive —, não encontrou quem fizesse para ele, ora deixando transparecer o resíduo de tinta preta nas têmporas, esborrado da última pintura (certamente vestígio de alguma canhestra autoaplicação) no cabelo ralo... apesar de tudo, é inegável que, de algum modo o tempo veio agindo — lento, anônimo, seguro — em seu proveito.

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  1. Parabéns👏👏👏👏👏👏
    Alberto Lacet.gostoso texto..Aguardemos a segunda parte.E vivas ao nosso editor amigo que é Germano Romero..através da ALCR TV

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    1. Obrigado P R Rocha, espero não decepcioná-lo. Abraco!

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