No excepcional livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, Carl Sagan escreve sobre a curiosidade de crianças: “Eu vejo que muitos adultos...

Cor azul, pergunta de criança

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No excepcional livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, Carl Sagan escreve sobre a curiosidade de crianças:

“Eu vejo que muitos adultos se incomodam quando crianças pequenas fazem perguntas científicas. Por que a Lua é redonda? a criança pergunta.
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Carl Sagan
Por que a grama é verde? O que é um sonho? Qual o buraco mais fundo que se pode cavar? Quando é o aniversário do mundo? (...) Muitos professores e pais respondem com irritação ou deboche, ou rapidamente mudam de assunto: “O que você esperava que a Lua fosse, quadrada?” (...) Por que adultos precisam fingir onisciência diante de crianças de 6 anos é algo que nada me faz compreender. O que há de errado em admitir que não se sabe alguma coisa? Nossa auto-estima é tão frágil?”
C. Sagan, “The Devil-haunted World: Science as a Candlestick in the Dark”, Random House, 1996, minha tradução.

A citação que encontrei termina aqui, e eu não sei onde está meu livro. A existência da internet para que eu ache as coisas que quero citar vai garantir que eu nunca organize a biblioteca. Mas Sagan continua, dizendo que, em alguns casos, podemos dar uma tentativa de resposta. A forma meio esférica da maioria dos corpos celestes tem a ver com a simetria radial da gravidade. Tentando falar com a criança e não com o leitor, (e aqui não é mais Sagan), a gravidade atrai com a mesma força o que está de qualquer lado, e isso faz com que as coisas fiquem meio redondas.

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Júpiter ▪ o maior planeta do Sistema Solar ▪ imagem: Nasa (missão Juno)
Há um outro debate interessante sobre as explicações, em nível leigo, de fenômenos da natureza, em especial os fenômenos ópticos. Um amigo, que aliás incentivou que eu escrevesse sobre isso hoje, me conta que o porteiro da sua escola secundária estava apreciando um arco-íris. Meu amigo nerd (termo que nem existia na época) fez uma explanação sobre a variação do índice de refração com as cores em gotículas de água e o efeito cromático desse fenômeno. O porteiro respondeu “interessante, mas eu vou continuar achando só bonito”.

O debate é: o modelo quantitativo, matemático, que a ciência vem trazer pro fenômeno cuja beleza nos espanta é um passo contrário à apreciação? Aqui está a aurora boreal ou austral (partículas de alta energia que vêm do sol interagem violentamente com o campo magnético da Terra nos seus polos, onde é mais forte),
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Fenômenos ópticos: Aurora boreal/austral ▪ Arco-íris ▪ Halo
um arco-íris (explicação do meu amigo acima), um halo colorido em torno do Sol (parecido com o arco-íris, mas causado por cristais de gelo; raramente observado em latitudes tropicais como a nossa), pontos no céu noturno que brilham, exceto os que não brilham (planetas estão mais perto de nós do que estrelas, e recebemos uma média de sua luz em diferentes pontos, diminuindo a flutuação causada por interações com a atmosfera). Observar a estranheza da parte sem parênteses dessa frase é esteticamente superior?

Eu recorro a outro físico, o grande Richard Feynman. Nobel de Física, teve relação forte com o Brasil. Deu aula na UFRJ, foi membro de bateria em escola de samba. Fez críticas sinceras e profundas sobre nossa educação, às quais alguns de nossos especialistas reagem até hoje com deboche.

Vou parafrasear. Feynman comenta a crítica de um amigo artista: o amigo vê a beleza de uma flor, mas vem o cientista e estraga tudo. Feynman retruca: eu vejo essa beleza também. E a vejo em escalas além da visão. Eu penso nas células que não enxergamos, na sua complexidade estética e funcional. Eu me lembro que essas cores não foram feitas para nós, mas para atrair insetos e aves. E me pergunto se a estética de insetos e aves é igual à nossa, Tudo isso se soma, não diminui, a apreciação original1. E estou com Feynmann nessa. A ciência não traz a resposta que desfaz o mistério, traz pergunta nova que o valoriza.

Vamos à pergunta de criança de hoje. “Por que o céu é azul?”.

Primeiro, é preciso responder a outra pergunta (mania de acadêmico, substituir uma pergunta por outra): por que o céu é claro de dia? “Ora, por causa do Sol!”. Não é assim tão simples. O que quero perguntar é: por que não vemos um céu escuro, e o Sol como uma bola de luz na escuridão? Vejamos a figura abaixo, o Sol visto da Lua. Como eu disse, um céu negro, e o Sol como única fonte de luz.

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Missão Apolo XII ▪ 1969 ▪ imagem: Nasa
Acontece algo na Terra que faz essa luz se espalhar, e ficar azul, por todo o céu. Não é difícil imaginar que esse algo é aquilo que a Lua não tem: uma atmosfera.

Então há algo na atmosfera que espalha a luz2. Espalhamento talvez não seja um fenômeno óptico de que o(a) leitor(a) tenha ouvido falar. No Ensino Médio falamos de alguns fenômenos da luz: a reflexão, a refração. Mencionamos absorção (de maneira qualitativa), para desenvolver uma teoria simplificada da formação de cores. Falamos destes porque a descrição matemática é relativamente simples e pode cair na prova. Mas a natureza não se divide no que é fácil ou não de cobrar na prova.

Quando chega ao topo da atmosfera, a luz do Sol interage com uma camada dispersa, desorganizada de átomos. A vibração do campo eletromagnético que chamamos luz faz vibrar esses átomos, e essa vibração por sua vez faz vibrar o campo. Estes acoplamentos explicam todos os fenômenos luminosos: a propagação no meio, a reflexão, a refração, a absorção, e é claro, o espalhamento.

Esses átomos do topo da atmosfera, dispersos, desorganizados, re-emitem luz em direções aleatórias. Esta re-emissão depende fortemente da frequência de vibração (ou seja, da cor). Ela é cerca de 16 vezes mais forte no azul do que no vermelho. Seria maior ainda no violeta, mas por outro lado a própria luz do Sol tem pouco violeta, e nossos olhos respondem menos ao violeta.
Talvez a ave da foto esteja apreciando um passeio em um céu violeta. Mas não é fácil perguntar a ela.

Em regiões mais densas da atmosfera, essas re-emissões em direções aleatórias começam a interferir mutuamente, o que causa o cancelamento desse espalhamento para os lados e para trás. O efeito macroscópico é que uma direção de propagação específica se estabelece, justificando o que aprendemos na escola: a luz viaja em linha reta.

O espalhamento na alta atmosfera3 foi modelado pelo inglês John Strutt, 3º Barão de Rayleigh (1842-1919). Este espalhamento de Rayleigh envolve uma matemática bastante elaborada e não vai ser mesmo estudado por crianças e adolescentes. Mas acho que podemos responder imperfeitamente à pegunta. O céu é azul porque os átomos do topo da atmosfera espalham o azul da luz do Sol por toda a abóboda celeste.

O azul espalhado deixa a luz do Sol desprovida das luzes mais frias (verde, azul) e mais carregado nas quentes (vermelho, laranja). Vinda do horizonte, a luz do Sol chega a nós tendo sido mais espalhada do que em incidência direta ao meio dia. O céu dos extremos do dia é vermelho e laranja, como sabemos. Volte também à foto da Lua, e veja como o Sol é branco...

É também o espalhamento (e não reflexão seletiva, como podemos pensar a princípio) que nos dá o azul de lagos e poços de água limpa. No caso, pequenas impurezas e variações de densidade na água provocam o espalhamento em todas as direções, o que obviamente inclui a direção contrária à propagação. Em algum momento, essa luz retro-espalhada volta ao ar e nos atinge.

Na verdade, espalhamento nos dá a maior parte do azul4. Azul por pigmentação (revestimento por uma substância que absorve as outras cores e reflete o azul) é raríssimo na natureza. O azul das penas de aves é por espalhamento em bolsões de ar na estrutura das penas. Olhos azuis são olhos com relativa ausência de pigmento (aquele que faz os olhos castanhos), deixando o espalhamento livre para atuar. Comparações poéticas entre olhos azuis, mares e lagos podem ser mais literais do que a princípio parecem.

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Giovanna Gomes
A relativa raridade do azul leva a um fenômeno curioso: uma palavra para azul é rara em civilizações antigas, e muitas vezes foi a última palvra para cor a ser estabelecida em vários povos5,6. Se você estranha a informação de que o azul é raro (exceto no céu e em certas águas), o motivo principal é a síntese em escala industrial do índigo a partir do século XIX.

Espalhado pelo céu e pelas águas. Raro na Terra. E as crianças perguntam.
Notas e outras referências1 ▪ Link. 2 ▪ Eu vou usar espalhamento neste texto, como tradução do termo técnico “scattering”. 3 ▪ Mais tecnicamente, o espalhamento da luz por obstáculos da mesma ordem de grandeza de seu comprimento de onda. 4 ▪ E. Hecht, “Optics”, Third Edition, Addison Wesley 1998. 5 ▪ Uma explicação das principais ideias está neste sítio. 6 ▪ Uma exceção é o Egito, que conhecia o raro lápis-azuli.

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