Eu lia uma dessas pesadas Histórias da Arte, quando tive um alívio enorme: depois de mais uma vez atravessar a Renascença Italiana – che...

O mágico está no momento

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Eu lia uma dessas pesadas Histórias da Arte, quando tive um alívio enorme: depois de mais uma vez atravessar a Renascença Italiana – cheia de calvários, mártires, batalhas e juízos finais – entrei numa leve e clara abordagem da arte japonesa. Com isso entendi porque ela foi agente importante da grande revolução ocorrida com o Impressionismo. Imagine o frescor que os europeus da época sentiram na descoberta, por exemplo, das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, de Hokusai.

Sinto, no haicai, o mesmo encanto:

tudo tão delicado quanto um bonsai.

Kilimanjaro S
Hora das velhas chinelas. De olhar as plantas, os passantes na rua, de ver e ouvir bem-te-vis cantando nos fios entre os postes, a memória se focando em pequenas coisas, nada transcendentais. Nada de Beethoven, Schopenhauer, Kubrick, dOs Sertões, de Sebastião Salgado. Hora de Saulo Mendonça:

"No verde do semáforo passarinho em trânsito faz seu ninho."

Olha a diferença!

Vi, no Museu d´Orsay, o retrato de Zola, feito por Manet, e reparei que na parede de seu gabinete há uma gravura japonesa, como japonês é o biombo que ele tem atrás. No Museu Rodin, vi o retrato de Père Tanguy, de van Gogh, com o marchand cercado de gravuras também japonesas. Este poema é, até certo ponto, bem Hiroshige em Ponte na Chuva, de que Vincent fez uma cópia:

"Sob a chuva a estudante encolhida volta para casa."

Digo “até certo ponto”, porque o “volta para casa” final é o toque haicai de Saulo, que aumenta o desamparo e a pressa da “estudante encolhida” “sob a chuva”.

Neste outro poema, também, o terceiro verso – ao contrário dos dois primeiros – só é possível na literatura:

"Chuvas de inverno. No telhado escorre inteira toda a minha infância."

A minha, não, mas a de meus filhos tomando banho de bica no quintal lá de casa, anos 60, no inverso sertanejo, sim. Com o que me aproximo mais deste homem:

"Sacristão puxando a corda chora com o sino saudades do seu menino".

Compare-se um desses versos, do Saulo, com um célebre poema similar do João Cabral de Melo Neto, que, aliás, não tem mais do que 16 versos, embora tudo pudesse reduzir-se – parece-me - ao grande achado dos dois primeiros:

"Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos"

Vamos ao todo:

"Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão."

Agora, o Saulo:

"Casinha no campo o galo canta. De longe outro responde."

Claro que o propósito é outro: não a manhã tecida de cantos de galos – o que é muito bonito – mas a extensão do campo e – com ela – a solidão da casinha. O mágico está no momento em que, terminado de ler o terceto, para-se para... "vê-la” e senti-la, exatamente como o recuo que se dá ante uma tela impressionista, pra poder entendê-la.

Tobias Keller
De mestre.

Como de mestre é este último que menciono – e com o qual completo 10% do total de haicais do livro, o que já é demais:

"Por trás da burca uma face reprimida. Ah! uma boca escondida."

Saulo gosta de trabalhar com a sensualidade. E com o cinema. Take 1 – Primeiro plano: burca. 2 – Close: face reprimida. 3 – Big close-up: boca... escondida. E a magia: acabamos de ver um... implícito nu.

Não sem razão comecei falando sobre gravuras japonesas influenciando decisivamente o Impressionismo.

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