Nos dicionários, a palavra “pompa” aparece primeiro com significado de luxo, grande ostentação. Em seguida, como “aparato magnífico e ...

Elgar: arte e glória

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Nos dicionários, a palavra “pompa” aparece primeiro com significado de luxo, grande ostentação. Em seguida, como “aparato magnífico e suntuoso". Em terceiro, traduz-se com o brilho do esplendor, da magnificência que define algo excelso e grandioso. É sobre este aspecto, distante da afetação e do pedantismo, vulgarmente associados ao termo, que vamos falar.

A pompa está em todos os lugares. Numa cerejeira em flor, num ipê que resplandece em um céu de primavera, num lírio que desponta solitário no meio do campo, no luar que desce da noite sob o olhar das estrelas.

Espetáculos da natureza são dotados de pompas incríveis. Com exímia beleza, a Criação concedeu aos pavões indumentária admirável, que ilustra até a sabedoria mitológica com os cem olhos de Argos Panoptes'.

Há faustos exemplos no reino animal, seja na terra, no ar, ou na água, como exóticos lagartos, crustáceos, anfíbios, besouros, serpentes, medusas, peixes, e belos mamíferos. Talvez estejam entre os vegetais e os seres que voam a exuberância mais espantosa. Pássaros, flores e borboletas de infinita variedade encantam-nos com a extraordinária beleza de suas asas, pétalas e plumas. Segundo a sabedoria do Evangelho, nem o símbolo máximo da suntuosidade pessoal, o Rei Salomão, conseguiu se vestir como um lírio do campo...

Além da estética das formas, há rituais coreografados pelos animais com apuro impressionante, desde as danças de acasalamento às magníficas revoadas de pássaros, orquestradas sem maestro, com divina perfeição. E com que garbo os cisnes ostentam sua graça no espelho d’água como se fossem regidos por Debussy, aos arpejos de “Reflets dans L'eau”...

Vem dos primitivos a emulação por retratar-se com pompa, à imagem da Natureza. Dos cultos tribais às barcas solares, que conduziam deuses egípcios pelos céus; das cerimônias de iniciação às bacanais, das danças do fogo aos carnavais, dos ritos de passagem às procissões religiosas, em tudo a pompa se fez presente, provendo sonhos e devaneios em busca de beleza e emoção.

Na arquitetura, no paisagismo, na engenharia, o homem imprimiu o fulgor latente de seus anseios de luz, ainda que marcados pelos equívocos da ilusão efêmera em produções conquistadas à guisa de exploração e injustiça, em majestosos templos e catedrais. A imagem grandiosa com que muitas religiões pretendem refletir a divindade se sobrepôs à essência de seu real significado espelhando-se no exagero do que é edificado até hoje.

Fausto e opulência também revestem cerimônias e cortejos fúnebres, dos tempos primitivos e lendários aos dias de hoje, sob variadas concepções acerca da morte física. Antigos gregos e romanos organizavam ritos teatralizados, divididos em atos que se iniciavam com a exposição do corpo morto, considerações reverenciais à memória do falecido, seguidas do sepultamento, inumação ou cremação e, por fim, a celebração do culto à sua partida. Também se constituíam em oportunidades para que famílias tradicionais ostentassem glória e prestígio.

As pompas também podem ser silenciosas, sem necessidade de ritos ornamentados com artificial excentricidade. Naturalmente silenciosas como crepúsculos, alvoradas, e luares que desfilam fulgurantes a pratear a noite em cima de rios, mares e lagos. Justamente pela singular autenticidade talvez sejam as mais belas, como as ondas que rodopiam na bravura das marés altas, ou quando se acalmam nos reflexos cristalinos em que as profundidades oceânicas e celestes se espelham.

Decerto a verve com que os oceanos resplandecem e se movimentam haja inspirado os músicos ingleses Vaugham Williams e Sir Edward Elgar a páginas célebres da literatura musical. O primeiro com sua “Sea Symphony” (Sinfonia do Mar) composta com poemas de Walt Whitman, e o segundo, Elgar, com seu régio ciclo de canções para contralto e orquestra — “Sea Pictures” (Imagens do mar) — em que musicou cinco poemas de autores britânicos do século 19. A canção “Sabbath morning at sea” (Manhã sagrada no mar) bem retrata o valor conferido às belezas marinhas, com ênfase à poesia e à voz feminina.

Aliás, a pompa é magistralmente retratada na música por Elgar, compositor que é popularmente mais conhecido por sua portentosa obra “Pomp and Circumstance”, um conjunto de um conjunto de seis exuberantes marchas. O “trio” da primeira delas celebrizou-se mundialmente sendo executada até hoje em garbosos e fulgurantes espetáculos e cerimônias . A contagiante obra logo se tornou tão emblemática para tais ocasiões que foi solicitado ao ensaísta e poeta inglês Arthur Christopher Benson que escrevesse um texto a ser adaptado à música, com citações da canção patriótica “Land of Hope and Glory” (Terra de esperança e glória) para ser entoada como Ode à Coroação do Rei Eduardo VII.


Comovido com a repercussão de Pomp and Circumstance, Edward Elgar chegou a confessar publicamente: ”Pouco pensei que a amável melodia do trio da primeira marcha, um dia, viria a ser nosso segundo hino nacional”. Já se cogitou que a peça se tornasse o Hino da Inglaterra, com aprovação da maioria da população, registrada em pesquisa, uma vez que o hino executado em cerimônias oficiais é o do Reino Unido. A secular canção “God Save the Queen” (Deus salve a Rainha), de autoria não definida, também é frequentemente usada como hino da Inglaterra.

Contudo, a pompa que se expressa na música de Elgar extrapola muito a marcha nº1 de Pomp and Circumstance. A começar pelas outras cinco partes que compõem este extraordinário trabalho sinfônico. A parte central da quarta também se notabilizou, como a primeira marcha, que, com a quinta, são exemplos a refletir fulgentes cortejos cerimoniais.

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Edward Elgar ▪ 1857—1934
A obra musical de Edward Elgar triunfa além do que é mais conhecido. São peças que abrangem grande variedade de gêneros como suítes, motetos, cânticos, idílios, música de câmera, danças, intermezzos, lieds, corais, promenades, sonatas, serenatas, caprichos, minuetos, variações, música incidental, elegias, peças para piano, canções, arranjos para corais de Bach, e oratórios.

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Nas três sinfonias, no Concerto para violino e orquestra, e no Concerto para violoncelo e orquestra, Elgar se consagra com primorosa capacidade técnico-criativa. Concebidas em estrutura, impressionam pelo colorido, riqueza tecidual e polifonia. A maneira como ele monta tais criações sinfônicas, sem fugir da “forma sonata”, ultrapassa paradigmas tonais e atonais, em ponto e contraponto .

Há temas de beleza épica, melodicamente contagiante, que após serem apresentados integralmente se espraiam por toda a obra em fragmentos ornamentados e construídos em camadas com formidável unidade .

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Alassio ▪ Itália
Incola
São colossais os temas das aberturas “Cockaigne”, “Froissart” e “Alassio” (In the South). A primeira retrata a homenagem pretendida por Elgar ao espírito festivo do povo londrino, em que a alegria é exaltada com fervor, e, claro, com a pompa que o assunto merece. A segunda é um portentoso “poema sinfônico” em louvor às crônicas de Jean Froissart, sobre quem Elgar leu na obra do escritor e poeta escocês Walter Scott, o que demonstra sua estreita afinidade com a literatura . E Alassio, uma brilhante “abertura de concerto” inspirada na bela comuna do sul da Itália, em um período de férias que Elgar desfrutou com a família. Considerada uma sinfonia de movimento único, Alassio foi descrita pela crítica como “um pináculo indiscutível da literatura orquestral romântica tardia, plenamente à altura dos melhores momentos de Gustav Mahler e Richard Strauss" .

Na cantata Caractatus, obra incidental de quase duas horas, dividida em seis cenas para soprano, tenor, barítono, dois solistas contrabaixos, coro completo e orquestra, com libreto do poeta inglês Harry Acworth, contém outro tema épico que ficou conhecido como “marcha triunfal”. Nesta apaixonada cantata, Edward Elgar retratou, a pedido de sua mãe, o reconhecido amor pelas paisagens das colinas “Malvern Hills” , onde morou, escrita com texto de seu vizinho poeta.

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Alguns de seus memoráveis temas são relembrados em trabalhos distintos, criando neles laços que imprimem a personalidade singular do compositor.

Nos movimentos lentos e contemplativos dos concertos e sinfonias, Elgar é tão delicado e bucólico quanto solene e circunspecto . Ao envolver o violino e o violoncelo com a orquestra, oferece a estes instrumentos a oportunidade de expor além do poder de solista individual, a capacidade de dialogar monumentalmente com o conjunto completo de timbres e naipes, seja na profusão orquestral ou nos solos pujantes de paixão .


A longa e epopeica introdução entoada pela orquestra com espírito de sinfonia, no concerto para violino, é um exemplo da envergadura criativa de Elgar.

Já no Concerto para violoncelo, o instrumento solista se introduz com flamejante dramaticidade, exibe o tema principal após o breve prólogo, e converge com a orquestra para uma magnífica reexposição em tutti .


Elgar também se revela um mestre da delicadeza lírica e refinamento romântico em comoventes peças. “Salut d’Amour” é uma bela declaração de amor pessoal. Em “Sospiri”, ele transcende corpo e espírito a uma eloquente declamação de paixão pelas belezas da existência, da natureza, com a orquestra a cantar sobre suaves e encantadores arpejos de harpas.

Ele só escreveu duas sonatas. Uma para órgão e uma para violino e piano. A esta última, o jornal “Times” se referiu: “A sonata para violino de Elgar contém mais do que tudo o que ouvimos anteriormente em outras formas”. Sua complexidade técnica e virtuosística, que relembram Paganini , a tornam uma das célebres composições do gênero, com passagens de rara e apaixonada doçura em seu Andante.


Embora Edward Elgar tenha se honorificado como o “Compositor das Pompas”, principalmente pelo trio da primeira de suas marchas, com o efusivo tema frequentemente incluído em celebrações festivas e protocolares, há muito mais pompa em sua obra coral. Arriscaria dizer que na categoria vocal Elgar consolida a ideia máxima de aparato grandiloquente que a música é capaz de expressar.

As obras corais de Elgar são sublimemente emolduradas. Orquestra, coros e solistas formam um conjunto musical tão expressivo quanto os temas escolhidos para ilustrá-las. “As Imagens do Mar”, “O Espírito da Inglaterra” e a cantata “Caracactus”, já mencionadas, constituem-se em um legado musical arrebatador.


As de cunho religioso, como o oratório “O Reino” (The Kingdom), como texto dos Atos dos Apóstolos, em que o autor homenageia Cristo e o Reino dos Céus; “Os Apóstolos”, em que exalta passagens de vida de Cristo e os ditosos personagens do Evangelho, com escritos teológicos, poemas, e trechos dos oratórios de Haendel (Messias) e de Mendelsohn (Elias); Outro oratório “O Sonho de Gerôncio”, escrito com base no poema de mesmo título, do cardeal e poeta inglês John Henry Newman, que narra a trajetória espiritual de um bom homem desde o leito de morte, o julgamento diante de Deus, a experiência “positiva” do Purgatório, até a certeza de sua futura salvação; são obras-primas de estrondosa beleza.

É possível dizer que na peça “The Music Makers” (Os criadores de música) o notável compositor reúne toda sua concepção acerca do que define como Arte. Baseada no poema “Ode”, do britânico Arthur O'Shaughnessy, “Music Makers” não exalta apenas os músicos, mas todos os criadores da Arte, em que Elgar enxerga a redenção do mundo.

Nós somos os criadores de música Nós somos os criadores de sonhos Vagamos por ondas solitárias E sentados junto a riachos desolados Em quem a lua pálida brilha Somos os motores e agitadores do mundo Com maravilhosas cantigas imortais Construímos as grandes cidades Com nossa história fabulosa Moldamos a glória de um império.
tradução informal

Ao escrever esta peça para contralto (ou mezzo-soprano), coro e orquestra, que prima pela opulência artístico-musical, Elgar parece ter confessado sua extrema devoção à música sinfônica coral, sobretudo à voz feminina , que nela encontra grande relevo, além do pomposo aparato que a obra requer. Em vários momentos de “The Music Makers”, o compositor cita passagens de sua própria obra como “O Sonho de Gerôncio”, “Imagens do Mar”, a primeira sinfonia — belíssima inserção temática de uma obra em outra - o Concerto para Violino , e "Nimrod", a mais celebrada variação de “Enigma”.


Para reverencial homenagem a um grupo de 14 amigos queridos, Elgar compôs “Enigma”, que, como Pompa e Circunstância, certamente são suas composições mais conhecidas. Em cada uma das variações, ele narra a personalidade do amigo referenciado. A que se tornou mais famosa foi a nona, “Nimrod”, dedicada ao especial amigo Augustus Jaeger, a quem creditou os resultados da enorme ajuda que dele recebeu em um período de depressão. Numa inesquecível visita, Jaeger animou-o com ênfase ao poder da música, cantando o belo tema do Adagio Cantabile da Sonata Patética de Beethoven, melodia que teria inspirado Nimrod. Elgar deu este título à variação, como se quisesse relacionar o benefício da visita com os poderes do personagem bíblico, bisneto de Noé.

É em Nimrod que a pompa também se faz presente, mas com outra roupagem. A roupagem que reveste o amor ilimitado, incondicional, expresso em várias formas de sentimentos existententes em todos os seres: amizade, solidariedade, fraternidade e compaixão. Nenhuma pompa foi emoldurada com tanta formosura como em “Nimrod”, em cuja melodia crepuscular está refletida toda a superioridade do amor. O amor que tudo cura com as belezas que confere ao milagre da existência, quando vivida sob as bênçãos da Arte.

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  1. Felipe Avellar de Aquino31/7/22 10:37

    Texto maravilhoso, Germano.
    A geração de Holst, Vaugham Williams e Elgar representa o renascimento da música britânica, que tinha forte liderança na renascença, mas que não fez despontar nenhum grande compositor do Barroco até o final do século XIX. No início do século XX, perguntaram a Stravinsky o que ele achava da música britânica, a que ele respondeu: “a country with no music”!

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    1. Muito grato, professor Felipe. Você sempre acrescenta em seus comentários. Que bom ver que Stravinsky teve sua ideia contestada pela história. Um abraço

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  2. Ângela Bezerra de Castro31/7/22 20:18

    Sem palavras para dizer da grandeza desse seu texto.

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    1. Obrigado, professora. Fico feliz por ter gostado. Já disse e repito: no início destes escritos "musicais" , eu me questionava se os conteúdos abordados poderiam ser desinteressantes, já que tratavam de música erudita, um universo cultural infelizmente ausente ou pouco explorado na educação brasileira. Mas você me estimulou dizendo que eu fazia algo inédito ao conseguir transmitir significados da música, mesmo a leigos ou a quem não possui tanto conhecimento do assunto. Depois disso, não mais hesitei e a inspiração continuou a chegar, sempre acoplada ao seu estímulo. Mais uma vez, obrigado

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  3. Anônimo2/8/22 21:45

    Estou me deliciando com as músicas 👏👏👏👏👏👏👏❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️

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