Ninguém terá acesso ao Dr. Alex Monteiro sem passar antes pela secretária, Dona Clotilde, a megera, a guardiã feroz, que exigirá o ...

Johnny Bombom

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Ninguém terá acesso ao Dr. Alex Monteiro sem passar antes pela secretária, Dona Clotilde, a megera, a guardiã feroz, que exigirá o tema da conversa para por em pauta, e após rabiscar – ou fingir rabiscar – algo num papel, apertará o botão de uma cigarra por baixo do tampo da mesa e irá se erguer, dizendo um Aguarde, para se dirigir então ao corredor com várias salas, logo à frente da sua, e ali buscar a porta dos fundos, distinguida pela tabuleta de metal com o aviso: Diretor-Presidente.

Chegando ali, lhe bastarão duas pancadinhas na porta e esperar um instante pela mão invisível que virá abri-la, quando então aquele corpo magro e de membros compridos desaparecerá porta adentro, e por demasiado tempo para quem aparentemente tinha tão pouco a fazer lá,
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deixando o pobre do pretendente a uma Conversinha que será coisa rápida, condenado a apenas ouvir o discreto zumbido do ar condicionado, àquela altura já convertido na própria voz da solidão interior, uma vez que é grande a chance de que tudo transcorra sem nenhuma alteração, e durante um tempo mais do que suficiente para insinuar aquela interrogação no ar, até que finalmente emerja daquela porta, não a Dona Clotilde, a megera, mas ninguém menos que a boazuda da Henriqueta, a outra secretária.

Com um prévio ar de condolências e da mais comovente doçura, Henriqueta chega para comunicar – o andar é lento, bamboleante, meio que preguiçoso – que, infelizmente, o Dr. Alex encontra-se em reunião, não vai poder atender para o momento, se tem algo mais em que pode ser útil, e por aí, e se por acaso o infeliz do pretendente a Cinco minutinhos só com o Dr. Alex insistir noutra hora, convidado será a deixar telefone ou endereço para que entrem em contato com ele. Pois não é que o Dr. está de viagem marcada e, Infelizmente senhor, sem data certa de retorno.

Quando o já então ex-pretendente àquela Conversinha que era, falar a verdade, mais do interesse da empresa e não ia levar nadinha de tempo, houvesse por fim se retirado, a megera voltaria a zelar em seu posto. Que espécie de homem bom tem como secretária tipa daquela? É provável que até mesmo Johnny Bombom tenha alguma vez se perguntado.

No entanto a coisa muda de figura se é assunto de algum concreto interesse na sala refrigerada: a megera entra lá e sem demora estará de volta dizendo um O Sr. pode entrar, com o devido cuidado de ter deixado entreaberta a porta da sala, e voltando à sua mesa.

Lá dentro, um homem bastante gordo, no meado dos cinquenta e vestido com simplicidade, senão com desleixo, não raro em camisa de mangas curtas, e que apesar de limpa e bem passada, denunciaria não apenas a surra dos anos, mas também a resistente nobreza do linho, irá te receber com um sorriso e com uma mão rotunda e peluda, estendida por cima da grande mesa negra forrada pela papeleta, e mais aquela disposição quase maníaca para dizer sim a tudo, concordar com tudo, como se uma vez baixada a ponte levadiça entre ele e o incerto,
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temível mundo que gravita do lado de fora, não lhe restasse outra alternativa além da concordância compulsória, da harmoniosa fruição da boa e bem contida relação humana, e, caso ainda a impressionante Henriqueta venha a afastar-se um pouco do laptop e perguntar se o Sr. por acaso aceita café, ou água, a razão é simples: os códigos vigentes por ali já lhe avisaram que aquela conversa dispõe de fôlego suficiente para se estender por mais tempo.

Situação assim aplica-se com mais frequência ao visitante fora do círculo habitual da empresa. Não é o caso de Johnny Bombom. Este, como outros da empresa que não filhos do velho Seu Aluísio, o falecido fundador da Companhia, recebem tratamento muitíssimo bem conhecido de todos.

Restando, portanto, essa terceira versão em que a megera pergunta se a Presidência está sabendo da visita, se está aguardando, etc., e depois de verificar dia e hora na agenda, diz um Ah, aqui está, e em seguida aperta a tal cigarra, repete o ritual de sumir lá dentro e retornar com o Aguarde que provavelmente levará horas, e salvo aquele dificílimo de esconder incômodo em ver outros que chegaram depois sendo encaminhados sem mais delongas corredor adentro, a espera não é de todo mal para o pretendente a fazer aquele Comunicado rapidinho, mas importantíssimo, de que absolutamente não deve o Dr. Alex ficar alheio, uma vez que é aquele um dos poucos momentos possíveis de se cruzar braços dentro daquela empresa, sem alguém por perto a reparar na circunstância.

No mais, trata-se apenas de ter que ficar ali de frente com a rabugenta, metida naquele vestido absurdo e de cor, pode-se dizer, azul-limão, verde da Arábia, sabe-se lá, e de cujo decote é possível afirmar-se com alguma segurança que permite, sim, vislumbrar pelo menos as cordas do pescoço, de golinha arredondada, ombreado por umas impossíveis mangas curtas e fofas, presas por lacinhos, etc., vendo-a abrir e fechar gavetas, fazer anotações numa espécie de prontuário de recepção, passar uma ligação para dentro da sala refrigerada, ou simplesmente não passar,
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pela razão imperativa de alguma mentira que, pouco lhe importa, ouça quem estiver por ali, como se investida fosse a megera desse misterioso poder, o da transmutação aleatória, e isso, sem em nenhum momento se dirigir à presença ali, nem com um olhar, sem se desculpar pela demora, oferecer cafezinho, água...

Então a megera levanta o fone após ouvir o toque peremptório da cigarra, e quase imediatamente o repõe com um O Sr. pode entrar, dito sem fitá-lo nos olhos, e lá se vai Johnny Bombom despejar-se corredor adentro, mas já no meio desse primeiro impulso se contendo, já então se modulando para andar não apressado, e que, apesar da silhueta vasta, estará entrando num ritmo que pode até lembrar certa maleabilidade de bailarino (momento prenunciador de salto acrobático), de alguém que estivesse voltando a clima previamente concebido para a ocasião, e que fora temporariamente suspenso pela desgastante espera na antessala, o que não há de ser nada, releve-se, enquanto a megera, de queixo enterrado sobre o decote, e por cima dos óculos, o segue com seu mais severo olhar de reprovação.

É bastante provável que nesse momento, esteja a megera anotando mentalmente o jeitão malandro de quem ensaia o iminente rapapé, quem sabe, o pressinta, ou já o identifique como sendo a forma invariável com a qual este Senhor se apresenta, ou, dado o tempo da convivência, que lhe conheça, embora difusamente, o gesto recorrente, e que o aponte como o seu mais previsível e mais fiel cartão pessoal da falsidade.

Mas, ela ainda o vê sumindo no vão da porta, cabeça e corpo adiantados das pernas, quando o perde então de vista, e é assim, para bem do próprio fígado, poupada de vê-lo entrar e estancar logo depois da soleira, iniciando ali a larga mesura num gesto de saudação que será rapidamente recolhido, como a um chapéu de mágico, naquele ritmo de postura atenta ao próximo passo, e que transporá a sala até com certa graça, para dar em seguida um fim à brincadeira: eis agora Johnny Bombom devidamente perfilado, devidamente compenetrado diante do chefe, numa pantomima inesperadamente cerimoniosa.

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Inclina-se com uma mão estendida na sua direção, e já com a outra, fecha o cerco em torno da pronta resposta daquela rotunda e peluda, cujo dono ouve agora vibrar uma voz que, um momento antes, na porta, lhe parecera talvez melíflua, mas é agora firmemente colocada. tais palavras serão proferidas em tom baixo, serão a um só tempo guturais e sussurrantes, soando porém bem colocadas. O tom é íntimo e inquiridor: Como tem passado essa soberania, e a família, como vai... bem?!!!

O efeito porém não é bem o esperado, e ao que parece, o gordinho não se deixou impressionar pelo salamaleque de Johnny Bombom:

⏤ Bem, bem... como está? ⏤ E num gesto lento vai lhe apontando a cadeira.

Antes que se registre sequência, é preciso que alguém avise a Johnny Bombom que o Dr. Alex vem, há uns tempos, dando sinais claros de estar de sobreaviso com ele. Afinal, se trata de um empregado com tempo considerável de casa, um tempo já próximo de lhe conceder aposentadoria.

Sim, sabe tratar-se de empregado fiel, agregado que foi à empresa desde os tempos da privatização, coisa de uns 18 anos atrás. Sabe que prestou serviços inestimáveis naquele início, sabe que tem passado os últimos anos meio que de molho, e sabe que agora, com a mais nova retomada do autoritarismo no país, e a consequente mudança na legislação, pode, muito bem, estar vindo “vender” os novos/velhos serviços de sempre.

É bem possível que ao ver seu nome agendado para o dia, com aquele Comunicado rapidinho, mas importantíssimo, de que absolutamente... tenha o Dr. Alex considerado a possibilidade, algo desagradável, do velho Bombom (buscando, claro, se garantir no emprego), estar vindo, uma vez mais... como é mesmo, que se diz... ‘entregar’ – é isso! –, colegas seus de trabalho.
Do livro de contos “A Substância Brown”, de Alberto Lacet

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