Certa vez, tudo por aqui virou um inferno. Um bendito inferno, cheio de poesia, imaginem só! Melhor ainda, um inferno sem calor. Pelo contrário, bem friozinho.
Quando andava às voltas com a Comédia de Dante Alighieri, a boadrasta Alaurinda nos lembrou de que a cova mais profunda dos quintos do inferno dantesco é tão fria que até as lágrimas congelam, antes de escorrerem sua dor pelas faces do tormento.
Gustave Doré, 1885
Segundo o nosso amigo, professor Milton Marques Júnior, ora em périplo turístico-cultural na cidade de Victor Hugo, com sua musa Alcione Albertim, também expert em vernáculas, esta magnífica trilogia etrusca — Inferno, Purgatório e Paraíso — compõe o mais importante quarteto da história das Letras. Com Dom Quixote, Os Lusíadas, Os Contos de Canterbury e A Divina Comédia, estão assim consagrados Cervantes, Camões, Chaucer e Dante.
Voltando à tão efervescente visita dantesca entre nós, foi de uma intensidade tal que o apetite poético se estendeu ao artístico, musical e até operístico. Vieram à tona lembranças e personagens envolvidos com o infinito e grandioso universo cântico da Toscana medieval. As ilustrações da Comédia, criadas por Gustave Doré, Botticelli, Dali e até a nossa passada pela casa de Dante, em uma das visitas a Florença, se inseriram no banquete destas inesquecíveis recordações. Fez-nos assistir, em vídeo, à ópera Gianni Schicchi , de libreto cômico, musicado por Puccini, cujo protagonista é um dos pilantras que Alighieri entronou no seu inferno.
Gustave Doré, 1885 ▪ litogravura colorizada digitalmente
Gustave Doré, 1885
Ai de nós se não fossem estas grandes obras que os espíritos sábios e inspirados deixaram na Terra em sua valiosa passagem.
Gustave Doré, 1885
Isso nos fez lembrar o paraíso da consciência tranquila, da paz interior, tão enfatizado, desfrutado e exemplificado pelo cronista Carlos Romero, em sua última encarnação. Seu mundo terreno era tão prazeroso, entre livros, música e viagens, que, no aconchego doméstico, certa vez, chegou a confessar a Alaurinda:
⏤ "Lau, eu tenho tanto medo de ir para o inferno, quando morrer..."
⏤ "Como assim, meu amor, se você só faz o bem?" - retrucou ela.
⏤ "É porque eu já vivo num paraíso"... haverá um melhor depois desse?”
Sim, cronista, decerto continuas a viver num paraíso, o da plenitude espiritual. Que deve ser bem parecido com o que o gênio da Toscana imaginou para as pessoas que semeiam a bondade. Se amigo dele tivesses sido, já estarias lá, há mais de 700 anos...