Escapei no domingo quando o sol no ponto mais baixo do horizonte, metade da cara fora do mar, mal espreitava o mundo. Onde estacionei, ...

Presença de Odilon

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Escapei no domingo quando o sol no ponto mais baixo do horizonte, metade da cara fora do mar, mal espreitava o mundo. Onde estacionei, à beira do calçadão, ele pouco via, além de mim, numa Manaíra deserta.

Ali, naquele instante, a movimentação maior provinha das folhas dos coqueiros sopradas por ventos tão indecisos quanto eu e, quem sabe, quanto os ocupantes dos três carros que por mim passaram em marcha lenta, um após outro, em intervalos de poucos minutos. Apesar de saber de obrigações e compromissos em qualquer horário,
eu sempre imagino que somos todos errantes antes das cinco da manhã.

Máscara a postos, álcool no tanque e nas mãos, saí dali em direção ao centro da cidade igualmente vazio. E isso me agradava, porquanto não pretendia parar nem falar com alguém que, porventura, eu conhecesse. Pássaro liberto, fugido de uma gaiola, era como eu me sentia.

Cheguei ao pátio da Capela do Socorro uns 40 minutos depois de haver resolvido esticar o percurso, assim, de improviso. Ali, também, nenhuma viva alma, no que pese o hábito de madrugar dos que vivem no campo.

Brisa fresca e leve, folhas ainda orvalhadas, o cruzeiro com seus traços coloniais e a igrejinha caiada, telhas e piso avermelhados, como se recém-construída. Olhei aquilo tudo e senti, ao ponto do arrepio, a presença de Odilon Ribeiro Coutinho. Era coisa que ia além da mera lembrança. Era algo mais incisivo, o que incomodava o sujeito sem muitos credos nem profissão de fé que eu, lastimavelmente, sou.

Capela de Nossa Senhora do SocorroLocalização: Santa Rita-PB
Mas, pensando bem, não poderia ser outro, nem menor, o meu sentimento, a sensação tão fortemente manifesta, a percepção inquietante daquela presença. Afinal, fora por conta dessa e de outra capela, a da Batalha, que eu conhecera Odilon.

Cheguei até ele, em data da qual não lembro com a precisão do dia e do mês, a fim de cumprir pauta distribuída pelo editor Josélio Gondim. A entrevista renderia, na semana seguinte, a matéria de capa da revista “A Carta”, a que dei o título “Íntimo dos Santos”.

Capela de Nossa Senhora da BatalhaLocalização: Cruz do Espírito Santo-PB
Odilon havia decidido reconstruir as duas capelas advindas do fim do período da invasão holandesa com desembolso pessoal. Desistiu da empreitada, pouco tempo depois da entrevista, ao saber que isso lhe custaria os olhos da cara numa época de vacas magras para as usinas de açúcar, a sua, inclusive. Além do mais, prestígio pessoal era o que não lhe faltava. Meses depois da ideia, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional veio em seu socorro. No dele e, evidentemente, da memória e da história da Paraíba e sua gente.

Facilitou os entendimentos o fato de Humberto Lucena, paraibano de quatro costados, presidir o Congresso Nacional. Tanto é o que o Iphan também acudia, quase no mesmo momento, a antiga Casa de Câmara e Cadeia de Pilar, ambiente que recebeu Dom Pedro II. O Rio Paraíba, numa de suas maiores enchentes, havia derrubado um pedaço da fachada desse prédio, levado ruas inteiras de Cruz do Espírito Santo, os canaviais de Santa Rita e deixado metade da nave da Capela da Batalha em suspensão, a três metros do leito, depois que as águas baixaram. Também não lembro quanto tempo durou o processo das restaurações. Mas foram feitas.

Pilar-PB: Casa de Câmara e Cadeia de Pilar (à direita)
Hoje, as duas capelinhas erguem-se como testemunhas vivas da história, à pequena distância de João Pessoa, entre Santa Rita e Cruz do Espírito Santo. Ambas, informava-me Odilon, resultaram de promessa feita aos céus por um ajudante do Capitão Rebelinho, cujo grupo havia emboscado um contingente inimigo, no período da invasão holandesa. Ainda celebrando o sucesso da empreitada, esses homens seriam surpreendidos pelo ataque inesperado de uma tropa invasora que, em maior número, deles se aproximava. O mesmo Rio Paraíba, cheio de canto a canto, impedia-lhes a fuga. Só restava recorrer a Deus.

odilon ribeiro coutinho
Odilon Ribeiro Coutinho ▪ 1923—2000
E foi, exatamente, o que fez o auxiliar do Capitão. Prometeu erigir duas igrejinhas, se dali ele e os companheiros saíssem com vida. Nesse momento, o Índio Filipe Camarão chegava ao local à frente de outro bando armado. Apanhados em fogo cruzado, os holandeses fugiram. E as capelas vieram ao mundo. Algum historiador pode observar que não foi bem assim. Que pena... Foi como eu, encantado, ouvi.

O saudoso Odilon contava essa e outras histórias do gênero como ninguém. Ele definia o Baixo Vale do Rio Paraíba – ali incluídos os engenhos de açúcar de Pilar e São Miguel de Taipu, palco de romances de José Lins do Rego – como área de profunda evocação lírica e histórica.

Disse-me, certa vez, que Gilberto Freyre tinha no alpendre da Capela do Socorro (também usada por trabalhadores rurais para dois dedos de prosa, a caminho do eito) uma das provas cabais da intimidade que os nordestinos estabeleceram com os santos de suas devoções. Que falta nos faz gente como Odilon.

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  1. Muito bom, Frutuoso. Realmente, gente como Odilon anda fazendo falta.

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  2. Caro amigo.
    Tanto você, como Flávio e outros poucos, são exemplo de culto à memória histórica de nossa "velha Parahyba de guerra", cada dia mais varrida para desvãos que nem imaginamos existir.

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  3. Embora com um pouco de atraso, considero valer a pena registros como o que faço agora, saudando as palavras de amigo Frutuoso, pois nessa saudação vai a riste constatação de que a Paraíba tem pouca memória, especialmente para personalidades como o lembrado.

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    1. Sempre grato, Arael. E um abraço forte. Frutuoso.

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