Quando toquei o fundo da noite Eu afundei os pés na noite, Tão profundo desci, Que pude sentir Os lodos formados no te...

Quando toquei o fundo da noite

helder moura poesia paraibana
 
 
 
Quando toquei o fundo da noite
Eu afundei os pés na noite, Tão profundo desci, Que pude sentir Os lodos formados no tempo, O viscoso remorso do passado, Tão pegajoso e tão macabro, Que de arrepios me tomei. E quando toquei o fundo da noite, Senti a sufocação aquosa, O líquido de tantos pesadelos, Que me pus a subir em desespero, Entre braçadas de agonia, Num tormento crescente da asfixia Cercado de todas as bolhas De um mágico flagelo noturno De quem busca a vida em pânico. E quando finalmente subi E me vi na solar superfície Percebi que era... hoje. E pensei assim: quando morrer, Vou sentir saudade desse instante, Como nunca senti antes.
Os seus demônios
Então, o homem se alevanta, Está indignado, revolta-se, Parece resoluto, decidido. Seu olhar é de dor contida, Mas também de rancor, Mágoas antigas, calcificadas, Ressentimentos arqueológicos. Ele atira fora a máscara, Ali onde estava sua covardia, Toma-se de armas, Tange a poeira de sua armadura, Ele quer luta. Quer romper veias. Quer reparar injustiças, Não mais aceita, Deplora a resignação de uma vida. Prefere o sacrifício, agora. Está alucinado pela guerra. Então, lança-se ao mundo, Ele peleja suas escaramuças, Sua luta é feroz, titânica, A liça de um exército solitário. Ele digladia, arrosta-se ao ar, Busca inimigos, quer vingança. Está iracundo em sua pugna. Bate-se aqui, bate-se adiante. Não encontra os adversários Na ponta de sua vergasta, Eles fogem feito miragens, Encantam-se aos seus olhos, Cansam seus braços, Como invisíveis, desgastam, É batalha do seu fim. O tempo vem, corre, exaure, Como anos matando esperanças. O homem resfolega, suspira, As armas são inúteis Contra aqueles. Eles vencem sem gladiar, Eles não litigam, asfixiam. Ferem com seu escárnio. O homem dobra-se, Genuflexo de impotência. É batalha do sem fim. O homem recolhe-se, chora Débil, retira a armadura por inútil, Há feridas profundas, mortais. Atira longe as armas, Elas são um malogro, Não alcançam essas gentes Que inventaram a dor, A tristeza e a injustiça. Está alquebrado, humilhado. Só resta recolher-se ao escuro, Ao claustro casulo de uma vida inteira, Não há luta, não há guerra, Só desolação e desencanto. Enfim, chora. Dorme. Sonha com os tais demônios, Para acordar amanhã E seguir com as agruras de sempre.

Do livro Arqueologia da Noite
disponível na Livraria do Luiz

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