O amigo jornalista Luiz Carlos de Souza disse-me, certa vez, que se Mozart jamais tivesse existido e viesse à luz agora, criando a mesma música genial que produziu no século XVIII, provocaria o mesmo deslumbramento.
Lembrei-me disso uma série de vezes, ultimamente. Quando vi, por exemplo, os métodos de Duchamp — de cem anos atrás — reeditados no que se convencionou chamar de Arte Contemporânea, com sucesso estrondoso. Ou quando li o romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, e me senti ante um Jorge Amado redivivo, só que amazonense, e o vi obtendo o Prêmio Jabuti de 2001 com o velho regionalismo dos tempos de Zé Américo e Zé Lins.
Mas não só por isso esse romance é polêmico. Aldo Lopes é de Princesa e tem uma visão da Revolução de 30 muito parecida com a de todos os opositores do movimento, como Ariano Suassuna ou Carlos Dias Fernandes (que em seu romance Fretana, de 1936, chamava João Pessoa de Jayme Villoa). Digo polêmico porque a Paraíba parece que ainda se divide em perrepistas e liberais, tal qual a Verona de Romeu e Julieta vivia rachada entre montéquios e capuletos. Exagero?
Não. Veja a quantidade de gente que odeia o nome da capital. E confesso que me impressionei muito — há cerca de um ano — quando fui a uma solenidade na Academia Paraibana de Letras e vi a sala quase em peso cantando o Hymno a João Pessoa:
João Pessoa, João Pessoa,
Bravo filho do sertão:
Toda a pátria espera, um dia,
A tua ressurreição!
Como não tenho nada a ver com a coisa, entretanto, volto à primeira polêmica: O Dia dos Cachorros - regionalista e com seu realismo mágico - resiste ao deslocamento no tempo, como o Mozart de Luiz Carlos de Souza?
Carlos Newton Júnior
Fala de sua encantação ao ver os episódios mais importantes da Revolução de 30 magicamente transfigurados pela força real do texto poético... e acho que ele tem razão. Aldo conta sua história com a óptica do menino que — segundo me disse — cresceu ouvindo a versão do avô, a versão da própria Princesa do que houve e do que não houve naquele épico ano. Veja como Spielberg dirige E.T.: do ponto de vista das crianças, com os adultos vistos, na maioria, somente da cintura para baixo, como se dá, também, com os seres humanos nos velhos desenhos animados de Tom & Jerry, criados por Hanna & Barbera.
O Dia dos Cachorros tem algo semelhante, um truque todo seu: um certo desfoque infantil da História, a começar pela ausência dos nomes dos grandes inimigos e correligionários que agem fora do ambiente em que ele vive, como Zé Américo, João Pessoa e João Dantas, os próprios fatos lhe chegando sempre distorcidos, como o do Presidente, por exemplo, sendo morto a facadas no cabaré do cais de Santa Rita,
Aldo Lopes
Essas e outras coisas são ditas com a mesma verdade com que se diz que um dos personagens tem ossos valiosíssimos, de marfim, e que outro - quando pequeno -, viu um trovão ficar enganchado num pé de manga. Há um ponto em que se conta - como na Bíblia (a mãe de todos os realismos mágicos e fantásticos) - que choveu, na cidade, durante quarenta dias e quarenta noites seguidos.
O peso de O Dia dos Cachorros, além de tudo isso, é a força de uma linguagem que tem como raiz a sonoridade d'Os Sertões do Euclides da Cunha. E uma visão do mundo bastante pesada. As pessoas — diz ele — não passam de mamulengos feitos de carne, que é o material mais ordinário que se conhece. E o resto? O resto é irrequieto e entulhado, feio e sujo — e mágico. Lembra Bosch e Bruegel, cuja tônica também é a escatológica constante de referências a excrementos e sexo, aqui sempre ditos da maneira mais crua.
Bem. Aí está O Dia dos Cachorros.
Carpe diem: aproveite e leia o livro.