Os gramáticos falam em 1ª, 2ª, 3ª pessoas, para os pronomes pessoais eu, tu, ele, respectivamente. De preferência, deveriam falar em pronome elocutivo (o falante), alocutivo (o interlocutor) e delocutivo (a pessoa de quem se fala). Não se trata apenas de nomenclatura, mas de clareza de sentido. Um pronome elocutivo pode ser equivalente a ele/ela; ou pode designar tu ou você; um pronome alocutivo pode equivaler a ele/ela ou eu. O pronome nós, originalmente elocutivo, pode ser pronome de tratamento equivalente a você (excluindo o falante). É o que vamos tentar mostrar neste artigo.
MS
MS
Ocorre que eu nem sempre designa o emissor; tu/você nem sempre designa o receptor; e ele nem sempre designa a não pessoa.
Vejamos exemplo de um pronome ele/ela equivalente a eu. Num requerimento, o falante se trata a si mesmo como ele: “Fulano de Tal vem respeitosamente requerer de V. Exa. se digne conceder-lhe...” Ao ouvir tocar insistentemente a campainha da porta, o dono da casa poderá dizer “Já vai, já vai”, em vez de “já vou”. Ao telefone, poderá responder à pergunta “Falo com Fulano?” dizendo: “É ele”, em vez de “sou eu”. Também alguém poderá responder à pergunta “Como vai você?”, usando um pronome delocutivo: “Vive-se, trabalha-se...”
MS
Nos pronomes de tratamento elocutivos (de 1ª pessoa), o falante se refere a si mesmo na 3ª pessoa: “O papai aqui não leva desaforo pra casa.” “Meu coração detesta violência.”
MS
Na peça Os pais abstratos, de Pedro Bloch, há o seguinte diálogo entre um homem e sua amante:
DANILO; Eu não sou dono de mim, Denise.
DENISE: Até há pouco era.
DANILO: Parece fácil... Na hora... você chega em casa e entra logo em clima de criada nova, tintureiro, que manchou o terno azul, strogonoff, fogão dando defeito... De repente, você está até arriscado a descobrir que tem um filho que faz poemas... entende? Keats, Castro Alves, Rimbaud.
DENISE: Até há pouco era.
DANILO: Parece fácil... Na hora... você chega em casa e entra logo em clima de criada nova, tintureiro, que manchou o terno azul, strogonoff, fogão dando defeito... De repente, você está até arriscado a descobrir que tem um filho que faz poemas... entende? Keats, Castro Alves, Rimbaud.
BLOCH, Pedro. Os pais abstratos. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 43
MS
O tu elocutivo é um desdobramento de personalidade, uma espécie de pronome de tratamento de 1ª pessoa. Leite de Vasconcelos, em suas Lições de filologia portuguesa (Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1959, p. 167, § 46), apresenta o exemplo de um
MS
Vejamos um exemplo em que o pronome nós é um pronome de tratamento de 2ª pessoa, que exclui o falante, isto é, nós é apenas alocutivo, um plural de solidariedade. A mãe diz ao filho: “Vamos tomar a sopa?” (O filho é que vai tomar a sopa.) Um médico chega ao hospital e pergunta ao paciente acamado: “Como estamos hoje? Como passamos a noite?” (Esse nós exclui o falante e é apenas alocutivo. Significa: você.)
O vós de cerimônia ou de reverência teve sua origem condicionada ao nós de majestade. Era difícil não usar o plural para alguém que se tratava a si mesma como nós. O vós de reverência, isto é, com significação singular, é usado nas orações católicas, em poesia popular e folclórica, de respeito à tradição: “Dizei, Senhora Viúva, / Com quem quereis se casar, / Se é com o filho do conde...”
MS
“⏤ Num vais a buscar a lenha?
⏤ Por que num bai ele?” (= `Por que não vais tu?)
⏤ Por que num bai ele?” (= `Por que não vais tu?)
O alemão Sie (Elas) e o italiano Lei (Ela), são formas alocutivas de tratamento de respeito. Em alemão, contudo, Sie, forma de respeito, se usa sempre no plural.
“E pois que Senhor he certo que asy neste careguo que leuo como em qualquer outra coissa que de vosso serviço for uosa alteza há de ser de mym mujto bem seruida, aela peço que por me fazer simgular merçee mãde viyr dajlha de sam thommee jorge dosoiro meu jenrro, o que dela rreceberei em muyta mercee.”
PRADO, J.F. de Almedia, ed. – Carta de Pero Vaz de Caminha. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir (col. Nossos Clássicos), 1977, p.110
Não sei se o genro de Caminha foi mandado vir da ilha de São Tomé, mas, por esse exemplo, já se vê que o nepotismo havia no Brasil antes de haver o Brasil...