Acho que aqueles dois começaram a se imprensar na janela de Seu Severino por volta de 1958, o ano da primeira conquista brasileira de u...

Chamego

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Acho que aqueles dois começaram a se imprensar na janela de Seu Severino por volta de 1958, o ano da primeira conquista brasileira de uma Copa do Mundo. Compunham, então, o agrupamento de televizinhos para a audiência de jogos filmados, enlatados, despachados e exibidos, somente dias depois de ocorridos, num momento em que a tecnologia ainda não oferecia ao mundo os satélites de comunicação nem as redes de tevê para transmissões ao vivo.

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Expliquemos aos mais novos. Televizinho era termo usado para definir a pessoa sem dinheiro suficiente para comprar uma maravilha daquelas: uma telinha de nada com filmes, novelas, propagandas, desenhos animados e noticiário, tudo em preto e branco e chuviscado, pois, neste caso, a estação situava-se no Recife. Vários daqueles aparelhos dispunham de pernas de meio metro, ou de caixas envernizadas que se fechavam com portinhas de armário e jeito de móvel de sala. Os felizes proprietários não se opunham à ocupação das suas janelas nem das poltronas e tapetes por parentes e amigos mais chegados. Seu Severino era um destes.

Onde morava, a luz elétrica não chegava à sua e às demais casas antes de o sol se esconder. Era quando Oscar ligava o motor a diesel responsável por movimentar o gerador da cidadezinha. Às 22h30, aquilo era desligado, mas não antes de três avisos, a fim de que as famílias cuidassem de acender lampiões ou candeeiros e de recolher as cadeiras levadas às calçadas para a confraternização dos que não davam importância à televisão. “Isso é coisa do diabo”, dizia dona Emília já escandalizada com certos beijos. Os avisos de Oscar? Pois bem, eram três piscadelas das lâmpadas domésticas e das ruas, em intervalos de cinco minutos. Depois da terceira todas se apagavam.

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Até então, aqueles dois se grudavam, o mais disfarçadamente possível. Ele se inebriava com o aroma da água de colônia emanado de um belo corpo, enquanto ela sentia um bafo morno e arrepiante no pescoço. Creiam, os dois não se falavam nos primeiros dias de janela. Pouco a pouco, foram trocando olhares, sorrisos e comentários acerca de uma ou outra passagem mais divertida do filme e da novela. O banco da praça logo se interpunha a meio caminho de suas casas, cada uma em pontos diferentes da rua, já com o benefício da escuridão providenciada por Oscar,
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não de moto próprio, mas por ordem da Prefeitura, posto que óleo diesel nunca foi barato em tempo nenhum.

O casamento aconteceu por exigência do pai da moça a cujo conhecimento chegou a história daquela pegação. As praças têm olhos e ouvidos mais eficientes do que os das paredes, meus caros.

Os dois televizinhos continuaram, depois disso, na janela de Seu Severino e até receberam convite para o sofá, polidamente recusado. De volta à casa do sogro, com tudo escuro, ele dispensava o banco da praça, pois a cama lhes cairia de melhor modo. Veio um filho, outro e a vida ficou sem graça. A lida na roça, o cansaço disso decorrente e o dinheiro minguado agravaram o desânimo do casal a ponto de ele arrumar a mala a fim de conhecer o interior de Minas Gerais onde teria emprego sugerido por um amigo de infância.

E lá se foi o moço para campos mais verdes e prósperos. A mulher ficou onde estava. Não arriscaria a perda do empreguinho na Prefeitura. Se nada desse certo para o marido, este regressaria à roça pequena da família e a vida se ajeitaria do modo já sabido e vivido.

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Em Minas, ele aprendeu, em tempo bem curto, como selecionar, plantar e colher cana de açúcar. Mais do que isso, aprendeu as técnicas de moagem, fermentação do caldo, destilação e armazenamento da melhor cachaça existente naquelas bandas. Enquanto o amigo mantinha-se no campo e bebia além da conta aquilo que ajudava a produzir, nosso herói se aprimorava, profissionalmente.

O empregador já o tinha como imprescindível quando ele recebeu a informação de casa: o sogro morrera. Apertou umas tantas mãos e pegou o ônibus com a promessa do retorno à destilaria mineira. A vaga lhe fora garantida, pessoalmente, pelo patrão.

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Já em casa, findos o velório e o sepultamento do velho com quem, aliás, se dava bem, ocorria-lhe a ideia do próprio fabrico da cachaça que, ali, teria qualidade superior à produzida por engenhos tecnicamente despreparados. Filha única, a mulher herdaria o sítio paterno quando a mãe também se fosse, o que facilitava as coisas.

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O gerente do banco não lhe negou o empréstimo solicitado para as instalações necessárias ao abrigo de moenda, fornalha, caldeira, decantador, refratômetro, destilador e barris, tudo em pequena escala. Ao invés de imprimir o próprio selo, ele preferiu fornecer o que então produzia a marcas já comercializadas.

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Evidentemente, ele e os seus fizeram-se mais prósperos. A casinha da sogra foi ampliada, ganhou outros quartos, cozinha nova e sala de visita mais ampla. Ganhou, ainda, porta envidraçada e três janelas abertas, sobretudo, para acomodação da vizinhança nas noites de filmes e novelas. Os sofás e o tapete causavam inveja aos de Seu Severino.

Contam que várias marcas das redondezas passaram a oferecer cachaça de melhor qualidade em razão daquilo que os engarrafadores dele recebiam. Com o passamento da sogra, o casal vendeu o que tinha, juntou as malas, os dois filhos e partiu para Minas.
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Desde então, não sei dizer se ele retomou o antigo emprego, ou se tratou de produzir e vender sua cachaça. Mas sou capaz de garantir que, se optou pela própria marca, a ela deu o título “Chamego”.

Acho que o paraibano Assis Chateaubriand contribuiu para o surgimento dos televizinhos. Em 18 de setembro de 1950, quando inaugurou, em São Paulo, a primeira estação de tevê brasileira, ele assim o fez sem que o País dispusesse de televisores. Pois bem, importou uns poucos aparelhos da Europa e os instalou nas ruas a fim de que o povo os conhecesse. Quem tem a idade que hoje tenho, ou disso está próximo, cansou de ver prefeitos do interior a imitarem o velho Chatô com televisores em praças e mercados públicos para o alívio de salas e janelas. Acreditem.

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  1. Crônica que é também sociologia e história. Completa. Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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  2. Flávio Ramalho de Brito20/6/25 13:00

    Perdi o horário. Só consegui ler agora. Muito boa, como sempre

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