Dizer que tempo e saudade são implacáveis é chover no molhado. Escrever coisas assim é o que chamamos no mundo das letras de um “luga...

Tardes de domingo

nostalgia ribeirao preto tardes domingo
Dizer que tempo e saudade são implacáveis é chover no molhado. Escrever coisas assim é o que chamamos no mundo das letras de um “lugar comum”; ou seja, não é recomendado a um texto que vá ser publicado num rotativo de ilibada tradição e qualidade como este aqui. Mas fazer o quê se me falta inspiração e talento para buscar palavras ou algo de maior beleza estética
nostalgia ribeirao preto tardes domingo
GD'Art
para este ato de confissão que vou rabiscar linhas adiante?

É isso, meus amigos, minhas amigas Acabei por estar aqui numa tarde de domingo, agarrado a esta engenhoca martelando algumas teclas. E o que pretendo registrar com essas minhas veleidades de escrevinhador? Bem, já que não me foi dado dom e poder capazes de estancar o correr das horas, vou nessas minhas idiossincrasias entregar-me às saudades. Só que não vou gastar minhas poucas aptidões com aquelas recordações que machucam, que nos entristecem, ainda mais numa véspera de segunda-feira. Vou ficar com o que é bom de relembrar. Puxo pela memória, chego lá para trás no tempo e retrocedo quase 50 anos.

E onde fui parar nessa viagem inusitada? Tive que ajustar a bússula, 14 graus de latidude Sul e outros 15 de longitude Oeste e fui parar em Ribeirão Preto. Foi lá onde residi por dois anos no fim da década de 1970.

nostalgia ribeirao preto tardes domingo
Ribeirão Preto, São Paulo, 1970s ▪ Fonte: IBGE
Naqueles dias, eu casado há menos de um lustro e já com duas maricotinhas, serelepes que só. Janaína passando dos três e Ariadne pouca coisa além de dois. Lecionava numa lida danada de segunda à sexta-feira, por lá e cidades vizinhas. Mas meu epicentro era em Ribeirão. Havia coisas naquela cidade que me encantavam. Quais seriam? Ah, os alunos... O cursinho pré-vestibular onde ministrava minhas aulas,
nostalgia ribeirao preto tardes domingo
GD'Art
com mais de um milhar de almas que recolhia gente dali e das redondezas: Sertãozinho, Jardinópolis, Cravinhos, Brodowski, Bonfim Paulista e outros cantos. Era um povo alegre, gentil. Durante os dois anos que peguei no giz. por ali, nunca tive uma altercação sequer com gente alguma. Auditórios lotados com mais de uma centena. Pares de olhos e ouvidos atentos ao que dizia eu, ali, de microfone à mão, sentindo-me o rei da cocada preta.

Sábados, vez ou outra, recebia os chegados para molharmos a palavra, comer quibe preparado com requinte e ouvir os irmãos Sandra e Marquinhos. ela na voz, ele ao violão. O repertório era o dos mineiros do Clube da Esquina, mais outros. Mas a cantoria começava sempre com o “hino nacional” daquela gente: o “Saudade da Minha Terra”.


Naqueles anos a moçadinha daquelas paradas, raramente ouvia rock nos botecos. O som era de Tonico e Tinoco, Sérgio Reis, Pena Branca e Xavantinho, Milionário e José Rico, Tião Carreiro e Pardinho e por aí afora. Foi quando me encantei pelo gênero, a música raiz que brotava daquelas almas roceiras, com cheiro de terra molhada pelas primeiras águas da primavera.


Outra coisa de fazer inveja era o chope mais famoso do país, o do Pinguim, programa de muitos sábados à noite. Foi em Ribeirão que estive no bar do Machado, célebre goleiro do Botafogo local que numa tarde de sábado de 1964 levou 8 gols de Pelé. “Não via a hora do jogo acabar”, confessou-me ele e acrescentou: “Mas ganhei um motorrádio, como melhor em campo”. O placar poderia ter sido mais elástico do que aquele célebre 11 x 0, não fosse as mãos de Machado.


Saudade dos amigos que fiz e hoje nem notícias tenho. Saudade daquela cidade da terra roxa, dos colegas de giz, das tardes de domingo em que me dedicava às minhas cabritinhas, a maneira mais serena e delicada de esperar pelas segundas-feiras.

nostalgia ribeirao preto tardes domingo
GD'Art
Mas a saudade aperta mesmo quando me lembro de como aquela gente entrou em nossas vidas e até na alma de minhas meninas. Pois vejam: anos depois, morando em São José dos Campos, a professora perguntou à mais velha se ela conhecia alguma história para contar e de pronto a menina revelou a lista: Chico Mineiro, Menino da Porteira, Três Boiadeiros, Nelore Valente, Boi Soberano... Músicas caipiras, muitas vezes contam uma história, quase sempre triste.

Essas músicas, elas costumavam entoar nas tardes de domingo quando usávamos os lençóis para montarmos acampamento na sala. Que saudade daquelas tardes, eram tardes de domingo.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também