A voz é o instrumento primeiro, mais natural, de expressão primordial de onde parte toda a articulação para os instrumentos externos ao cor...

Vozes paraibanas

Ambiente de leitura carlos romero samuel sam cavalcanti Ottoni de Figueiredo Melo Collegium Pro musica louis boyer jose alberto kaplan musica canto coral canto lirico voz humana

A voz é o instrumento primeiro, mais natural, de expressão primordial de onde parte toda a articulação para os instrumentos externos ao corpo humano. Não é à toa, então, que durante séculos a música centro-europeia fundou-se em obras essencialmente vocais. Não é um instrumento fácil quando se quer, sobretudo, usá-lo para o serviço artístico. Desde os ritos romanos, os cantos cristãos foram concebidos com função definida para que, pela voz, o louvor chegasse como suave aroma às narinas do Altíssimo. Os editores Alec Robertson e Denis Stevens citam considerações do eminente teólogo francês Louis Bouyer a esse respeito:

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Na oração colectiva cada qual participava a seu modo assim emprestando à sua oração um cunho todo pessoal [...] Esta é estimulada e ensinada pelos Salmos e sempre sumarizada pelas Colectas [...] e por intermédio da Prex sacerdotalis, ou seja a consagração, eleva-se a par do próprio sacrifício de Cristo; e quando essa oferta transfigurada for restituída em Comunhão, será a vez do próprio cristão elevar-se até Cristo. Só então todos os benefícios da ordem sacramental... Portanto a sua vida tem de ser, como a da própria Igreja, ao mesmo tempo esse festival permanente do ano cristão e essa escola de ascetismo logo que compreenda correctamente a presença do Mistério dentro da vida cristã (extraído do livro História de Música, em seu primeiro volume “das antigas formas à polifonia”)

Proporcional ao grandioso trabalho de paraibanos em todas as Artes, é o desconhecimento da população em geral. Nisto, não se difere classe social ou econômica. É possível facilmente perceber o diametral descompasso entre o número de obras de grandes paraibanos, e a ignorância acerca destas – seja sob o aspecto educacional, seja sob o próprio fazer artístico em terra local. Os acervos de vultos das Artes, suas obras e sua história devem e precisam ser desejo de urgente e permanente resgate. Um povo que não canta, já dizia Villa-Lobos, não é feliz. Mas o cantar a que me refiro é um fazer mais apurado, artístico e que demande formação.

Em amistosas conversações com Ottoni de Figueiredo Melo, octogenário cantor e uma espécie de baluarte no canto em coro de nosso estado, como é de meu feitio questionador, quis-lhe indagar sobre o nível dos coros paraibanos – sempre amadores – e sobre a possibilidade de ter já havido algum grupo vocal profissional, ou qual dentre os que já tivemos em todos os tempos, o de mais destacado nível artístico. Com sua peculiar memória e cuidadoso empenho de manter viva a chama da tradição do canto por estas terras insólitas ao reconhecimento musical, ‘Seu Ottoni’ revelou-me a existência de um grupo que desconhecia completamente. De vida muito curta – denotando o sistemático desapreço das lideranças governamentais –, o Collegium Pró-Música foi um grupo camerístico com orçamento próprio para treze membros, em considerável destaque nas poucas apresentações que realizou.

Em Maio de 2000, os ex-integrantes Ottoni e Maria Elizabeth Pimenta, na luta pela preservação dessa lembrança, organizaram texto que acompanha registro da apresentação inaugural:

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Criado pela Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, por iniciativa da Diretoria Geral de Cultura, sob o comando do prof. Paulo Melo, e orientado pelo prof. José Alberto Kaplan, seu primeiro regente, o Collegium Pró-Música teve o objetivo de criar uma nova visão na música coral paraibana que, diga-se de passagem, era bem representada por vários corais da cidade. Com um pequeno grupo de 9 cantores e de 4 músicos flautistas, poder-se-ia fazer música de boa qualidade, com repertório renascentista, barroco e contemporâneo. A ideia foi posta em prática e, em poucos meses, estava pronto um repertório modesto mas que já dava para avaliar as condições do empreendimento. E sob a regência do maestro Carlos Veiga, que também dirigia a Orquestra Sinfônica da Paraíba, com o apoio integral do secretário da Educação, professor e músico Tarcísio de Miranda Burity e a gentileza da prof.ª Luzia Simões, que cedeu as flautas, fez sua primeira apresentação no dia 10 de dezembro de 1977, na igreja de São Francisco, monumento arquitetônico colonial do século XVII.

Seu Ottoni deu-me uma gravação que dispunha do registro original feito por um gravador precário de um dos presentes no concerto inaugural. Ele segredou-me que o percussionista paulista da Orquestra Sinfônica do Estado, e já falecido professor da UFPB – a quem conheci em seus últimos meses de vida – Odair Salgueiro, fez, em seu estúdio doméstico, melhoras no áudio, recuperando trechos, diminuindo reverberações e ruídos e masterizando a gravação amadora para que eles pudessem ter e compartilhar entre um pequeno grupo, até então. Participaram dessa estreia: sopranos Nilzete Silva, Kátia Helena P. Assunção e Yara Rosas R. Peregrino; contraltos Maria Elizabeth Pimenta e Mércia Meireles; tenores Alírio de Albuquerque Melo e João Fernandes Falcão; baixos Josinaldo Ferreira da Silva e Ottoni de Figueiredo Melo. Flautas-doce: Romero Damião (soprano); Rosinete Arruda Ferrer (contralto); Eliane de Castro Coitinho (tenor) e Antônio Fernandes Farias (baixo).

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Ele ainda contou-me anedotas – que são, na verdade, bem comuns no meio artístico em geral, e aqui mais ainda... – sobre as dificuldades de montagem, como, por exemplo, os flautistas não terem instrumentos próprios de qualidade e terem de depender das “boas vontades” de gestores institucionais a “emprestar”, superando rivalidades triviais e pessoais de brios entre tais lideranças musicais da região. Enquanto isso, como sempre costumo observar, atrasamos o principal que é fazer notável a produção musical paraibana... Superadas as vicissitudes comezinhas, o Collegium Pró-Música estreou com programa feito entre miscelâneas vocais intercaladas a pequenas danças para o quarteto de flautas; obras de Francesco Rosseli, Benedict Anton Auffschnaidter, Paul Peurl, George Friedrich Haendel, Tomás Luis da Victoria, Johann Sebastian Bach, Giaches de Wert, Johann Kusser, Adriano Banchieri, Orlando de Lassus, Baldassare Donati, além de peças selecionadas do Cancioneiro de Upsala.

Deste repertório variado, em quatro idiomas, trago-vos três compositores a demonstrar versatilidade e qualidades do grupo, cujo empenho e envolvimento musicais nos fazem falta hoje.

Do austríaco Benedikt Anton Aufschnaiter (1665-1742), o Menuett feito pelo quarteto de flautas-doce revela um potencial bruto no estado paraibano: quantos e quantos trios, quartetos, quintetos, sextetos até, de flautas-doce, poder-se-iam se consolidar com, não só repertório longínquo e estrangeiro, mas, acima de tudo, o cancioneiro folclórico nacional?... Os músicos deste grupo – alguns deles enveredaram pelo mundo universitário, como refúgio único à subsistência – poderiam ter sido destaque permanente nesse instrumento que é de timbre tão singelo quanto de fácil apreensão do público. Tenho carinhosas lembranças do Professor Romero Damião, em Campina Grande, inclusive no esforço pela divulgação da flauta-doce; também já bem depois, da saudosa Eliane de Castro, de personalidade inquieta por sempre aprender – fomos colegas de curso de idiomas na UFPB.

Orlando di Lasso foi uma espécie de gigante-artístico na Renascença, referencial franco-flamengo, e professor de toda uma geração; homem aproximado da aristocracia e nobre titulado pelo Imperador Romano-Germânico e Arquiduque da Áustria Maximiliano II. Naquela noite memorável o Collegium Pró-Música executou três pequenas obras dele. A famosa O la o che bon echo, apesar de requerer uma textura densa de dois coros – técnica que foi explorada in extenso por seus pupilos Gabrieli – alcançou seu curioso objetivo com os nove cantores do grupo.

Finalizo, rememorando as reflexões eclesiais do teólogo Louis Bouyer sobre a peça que abriu aquela estreia. Adoramus te Christe de Francesco Rosseli, obra homofônica que denota a ingenuidade e pureza de coração do asceta. O Maestro Veiga resolve dar um tempo mui lento que remonta a monástica vida de orações.

Tanto nos falta investir no conhecer do repertório secular como eclesiástico paraibano; tanto mais ainda é indispensável o reconhecer do artista e de sua formação como inerentes de uma sociedade amadurecida. Talvez nunca o povo paraibano devote o exato reconhecimento aos seus patrícios artistas. Deveras há muito o que conhecer, e que as vozes continuem a entoar; ainda que não haja ouvidos a ouvir, cantemos!


Sam Cavalcanti é mestre em música, compositor, crítico e escritor

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  1. Encantada, emocionada com o resgate histórico e, principalmente com a fonte da coleta de dados. O Sr OTTONI MELO este ano fará 70 anos de canto coral ininterrupto. Um verdadeiro baú de conhecimento artístico dedicado à PB.

    O professor Sam Cavalcanti mais uma vez nos presenteia com tamanha riqueza de informações que não podem ser perdidas ou esquecidas pelo tempo. Parabéns, professor Sam.!

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    Respostas
    1. Adendos assim são válidos para que os personagens vivos da história paraibana como seu Ottoni, sejam reafirmados como inesquecíveis, patromônio humano.

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  2. Mergulhar, aproximar-se, embrenhar-se, sobre os objetos de estudo tende a nos tornar plurais. Mestre Sam, aqui, nos dá um bom exemplo disso. Pois que também dialoga com aspectos da Musicologia Histórica tecendo uma crítica tão pertinente acerca do desconhecimento da cultura e seus valores. Bom texto nesse centenário de Celso Furtado...
    Cristóvam Augusto.

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  3. Cristóvam Augusto de Carvalho Sobrinho27/7/20 23:05

    Uma breve consideração acerca da referência ao autor... Sinto, realmente, falta da sua condição enquanto Compositor na descrição. Inclusive, do ponto de vista musicológico, importa lembrar... Cristóvam Augusto.

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  4. Muito interessante. Gostei. Conheci o Kaplan. Parabéns. Vou compartilhar. Muito obrigada por dar-me a conhecer esse trabalho.

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