Quem ama os livros não se separa deles mesmo nas situações mais inusitadas da vida. Essa certeza eu tive quando comecei a acompanhar uma se...

Vida andada, girada, não importa!

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Quem ama os livros não se separa deles mesmo nas situações mais inusitadas da vida. Essa certeza eu tive quando comecei a acompanhar uma senhora, moradora de rua, elegante, com roupas de uma outra época e de um outro lugar. Ela parecia um personagem de romance que transitava pelas quadras e super quadras de Brasília. Enigmática, chamava atenção daqueles mais atentos à paisagem e ao que dela fazem parte.

Mesmo morando na rua, nunca estava deselegante. Magra, esbelta, saia longa de cintura alta, larga, com botas e cabelo longo encaracolado, o louro já indo embora para dar lugar ao grisalho, carregava uma maleta de couro pequena parecendo Mary Poppins, (filme da minha infância, um dos clássicos com Julie Andrews)
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Acho até que ela voava, aparecia em vários lugares, e na bolsa havia livros, muitos livros, além dos seus pertences. Ela não aceitava dinheiro, só para um cafezinho, ou comida, o suficiente para o momento da fome. Não conversava muito com as pessoas, mas era fácil encontrá-la lendo um livro embaixo das árvores nas quadras da Asa Sul.

Para quem não conhece Brasília, a Asa Sul parece um imenso jardim de Burle Marx, cheio de grandes árvores, Ipês de todas as cores, Barrigudas e outras espécies que dão flores, cada uma em sua época. Há também amoreiras, abacateiros, mangueiras e jaqueiras que, na época dos seus grandes frutos, brindam-nos com perfume delicioso, adocicado. Há também os pés de manacá, e os canteiros centrais com flores do campo simples, como “cristas de galo”, cravos, aqueles cor de laranja e vermelho, margaridas, além dos gramados. É um habitat perfeito para beija-flores, bem-te-vis, rolinhas, pica-paus, maritacas, corujinhas buraqueiras e quem-quem. São muitas as espécies que andam por lá. Como tinha vontade de sentar e conversar com aquela senhora, mas ela vivia tão envolta no seu mundo que eu não ousava atrapalhar.

Um dia ela saiu andado pela L2 Sul e foi parar na Asa Norte. Passou pela rua dos restaurantes, atravessou o eixão, por cima onde tem o museu em forma de cuia, e desceu na rua dos ipês brancos, enfileirados no canteiro do meio. Eles são menores, os últimos a florescerem antes da chuva, dão o sinal de que a longa seca vai chegar ao fim. É uma área bem descampada, só com gramado e cimento. As árvores grandes estão na Esplanada, em frente aos Ministérios, com suas sombras generosas, um convite à caminhada para esquecer a dureza da burocracia.

Um dia acordou decidida e resolveu ir lá, atrapalhar o trânsito, na esperança de que ele olhasse para ela.
Quando a senhora chegou no pequeno girador, viu um homem todo vestido de branco, até elegante, com um boné de marinheiro organizando o trânsito. Ficou observando aquela estranheza, logo ela que sempre atraia olhares de todo tipo, mas nesse dia foi ela quem parou o seu olhar, como se encontrasse quem tanto procurava. Não ousou se aproximar, subiu as escadas de acesso ao outro plano para poder olhar melhor, de longe, mas estava chamando mais atenção do que o usual, nesse lugar que ainda não havia se acostumado com ela.

Guiada pela copa das grandes árvores, buscou um lugar tranquilo para ler um pouco, quem sabe se distrair da realidade e da curiosidade de saber sobre aquele marinheiro. Será que achou quem tanto procurava? Será mais uma das imagens misturadas pela vida, pelos dias andantes da rua? Sentou num lugar mais escondido e continuou a ler.
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Já se distraía, quando, ao longe, viu o marinheiro caminhando pelo estacionamento de baixo, aquele no barro vermelho. Resolveu segui-lo só com o olhar, mas logo o perdeu de vista. Voltou à leitura e agora o mundo já era outro. Passou todo o dia ali e, quando a fome bateu, já entardecendo, resolveu voltar para o seu pouso seguro, onde o pedaço de pizza da Dom Bosco era garantido.

No outro dia bem cedo voltou à Asa Norte, e para lá retornou tantos dias que passou a fazer parte da paisagem. Já não chamava atenção. Não teve coragem ainda de se aproximar do marinheiro, que só tinha olhos para os carros, falava com eles o tempo todo. Um dia acordou decidida e resolveu ir lá, atrapalhar o trânsito, na esperança de que ele olhasse para ela, na esperança de reconhecer aquele que procurava.

Era uma sexta-feira, dia de trânsito intenso. Com vontade de mais chegar perto, ela se atirou na roda do trânsito, como criança que entra na corda para pular, e passou para o centro do balão. Ele não a viu, só via os carros. As pessoas olhavam para ela, o trânsito engarrafando ainda mais, a roda girando, os carros apressados, e ele querendo resolver o que não tinha solução. Mas nada tem solução nesse mundo de quem ainda possui um fio de realidade, nesta loucura da cidade.

Nesse instante, um carro bateu na traseira do outro. Tumulto, confusão, o marinheiro sem entender o que houve, insistia com seu apito azul, que não resolvia. Ela paralisada, ele se aproxima, trocam palavras desconexas, olham-se por um instante e se reconhecem. Mas é só um instante, e cada um volta para o seu lugar. Ele olhando para os carros e ela regressando para o seu pouso quase seguro, na Asa Sul. Com o coração aliviado, não tem o que fazer, não se lembra mais, não importa.

E sua vida continua, andando, lendo e passando.

* Personagens reais da paisagem de Brasília. Sempre encontrava com eles e não sei se ainda estão vivos. Ela, Dona Joana, professora de agronomia, foi para a capital federal escrever um “livro denúncia” que nunca chegou ao fim. Perdeu todo dinheiro que levava e passou a morar na rua. Ele, não sabemos o nome, por muitos anos organizou “imaginariamente” o trânsito na N2, anexo dos ministérios. Dizia-se “paraibano de família conhecida, de posses” e estava sempre lá, de branco, todos os dias, no mesmo horário.


Rejane Vieira é graduada em comunicação e mestra em saúde pública

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  1. Desconcertante. Não se imagina o final. Há uma ilusão acontecendo o tempo todo...

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  2. Muito bom! Uma narrativa bem construída e deliciosa de ser lida.

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