Há mais de 65 anos, meados e final dos anos cinquenta, me vejo ainda hoje mergulhando num cenário infantil da Praça D. Adauto em frente...

Os meninos da Rua Paulo e minha infância rediviva

infancia lembranca leitura ferenc molnar
Há mais de 65 anos, meados e final dos anos cinquenta, me vejo ainda hoje mergulhando num cenário infantil da Praça D. Adauto em frente do Palácio do Arcebispo onde reinava D. Moisés Coelho. Na Praça do Bispo, dividida em três seções ajardinadas, eu e um grupo de meninos usávamos intensivamente a primeira fração defronte ao abrigo pastoral de benemerência do Padre Zé Coutinho para nos reunirmos, jogar bola e exercitar nossas habilidades com bolas de gudes. As adquiríamos no Armarinho do mal humorado Seu Viana, na Rua Direita. Éramos muitos, e todos moravam na Visconde Pelotas, Rua Direita, na Conselheiro Henriques, e na Rua Nova, a da Catedral.

Fundaj
Eu era um dos infantes, e dos piores peladeiros, sempre era reserva. Praticamente morava na casa dos meus avós Luís e Carolina Lopes de Mendonça na citada Praça do Bispo, em face de uma prolongada e sofrida doença de meu pai, que ali morrera. Como o grupo de crianças era grande, as minhas chances de compor os times eram muito pequenas. Só passei a ser admitido quando meu pai me dera uma bola de futebol de salão e uma joelheira. A partir do domínio da bola e do apito, que substituíra uma bola de meia, passei a ser uma notória e obrigatória presença.

Alguns anos depois, pela minha memória rediviva, e a léguas de distância do “maledetto” Alzheimer, minhas lembranças me transportaram até o livro “Os Meninos da Rua Paulo”, do autor Ferenc Mölnár (1878-1952) judeu húngaro de Budapeste que morreu exilado na América.

Caiu em minhas mãos, presenteado pela minha Tia Lucila, da coleção de bolso Bup. No início da minha adolescência os escritos de Mölnar se cristalizaram para sempre com os impressionantes recortes da aguerrida infância daqueles meninos, em especial de: Boka, o general da turma da Rua Paulo; Nemecsek, o único que era soldado raso; e Geréb, o traidor.

Nuno Almeida
Com muitos outros, formavam a Sociedade do Betume, que primava pela honra, o caráter e o perdão. Com destemor e coragem, guerreavam contra um bando inimigo, os irmãos Pázstor, os “camisas vermelhas”, mais velhos e agressivos, que pretendiam invadir e se apossar do “grund” um terreno baldio. Entram em combate contra os invasores para defenderem a sua amada “pátria”, o grund, que era cidadela deles.

A infância incrustada pela fantasia, destemida e dominada pelos sentimentos de coragem, adesão à aventura, ao heroísmo e à amizade, pela obra de Mölnár, varou o tempo, incólume e admirada, aportando-nos a superação do tempo, do localismo, negligenciando totalmente as frações de idades de seus leitores.

Todos nós fomos impregnados pela fantasia com nossas histórias de criança. Em algum momento da vida infantil, fomos também meninos da Rua Paulo. Embora distanciados do mundo adulto, mas, mantendo comportamentos que oscilavam dualmente nos enclaves e imposições comportamentais de adultos e crianças.

Mölnár, em 1907, trouxe à tona o seu livro com um cenário do final do Século 19, fascinando as diferentes gerações e faixas etárias que se seguiram.
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No Brasil, o livro dele teve mais de 800 edições, e audiência de mais de um milhão de leitores. Fui um destes, que teve o privilégio de ser o seu leitor, no intróito da minha adolescência. Fui impregnado pelo afeto, e o deslumbre daquela majestosa obra, um admirador ancestral daquela infância fantasiosa, marcada pelo cultivo da amizade e do heroísmo guerreiro.

O nosso “grund”, era a Praça do Bispo. Que muitas vezes fora ameaçado por uma troupe das ruas do Roger, que nos surpreendiam com invasões no largo externo do Palácio do Bispo. Impediam nossas brincadeiras e massacravam os frondosos jambeiros existentes. Cumpria-nos a defesa do nosso território, mas frequentemente tínhamos que bater em retirada.

Nunca fomos molestados pelos acólitos de D. Moisés, nem por D. Manoel Pereira, que o sucedeu no Arcebispado em 1959. A Igreja Episcopal assimilava bem as nossas diatribes infantis.

A citada obra de Mölnár teve a magistral tradução de Paulo Rónai, que deve ter penado ao se debruçar sobre uma das línguas mais difíceis do mundo, o Magyar, cuja origem remonta às estepes do Cáucaso e que tem um abissal parentesco com as línguas basca, finlandês e o japonês, e que não tem nenhum vocábulo indo-europeu.

Letícia Manosso
As belas e entusiasmadas páginas, no seu final, atraiçoaram o meu encantamento com a dolorosa morte do garotinho Nemecsek, de 11 anos, subitamente acometido de uma pleuro-pneumonia resultante de vigilância invernal no “grund”, e que sempre era exercida por ele enquanto soldado raso. Nunca abandonava seu posto de sentinela, e pelo frio fora fisgado pela fatal doença. Como era o personagem central, com ele morrera a história da Rua Paulo.

Dos dizeres de Nemecsek, me impressionou muito o relato dos seus sentimentos de tristeza quando dizia que “Detestava a fábrica em que o pai trabalhava, que o engolia alegre e repousado, e o expelia ao anoitecer abatido, triste, sujo e cansado.” Acelerou a triste morte do garotinho ao saber, no leito da morte, que “grund” iria sucumbir dando lugar a um edifício.

Em Agosto de 1973, visitando o Leste Europeu, fui até Budapest, bela cidade sombria e soturna, e intempestivamente busquei visitar a Rua dos Meninos. No meio de um profundo desconhecimento da população local, acabei encontrando a Rua Paulo - Pal Útca. Depois fiquei sabendo que na Rua Práter, próxima a Rua Pal, foram assentadas maravilhosas esculturas de bronze dos Meninos da Rua Paulo.

O futebol de rua, as bolas de gude (criadas na Hungria), as disputas de espaços para brincadeiras, as corujas empinadas, a amizade e o respeito mútuo nas evocando as nossas infâncias na Praça do Bispo, nos fizeram também Meninos da Rua Paulo.

Péter Szanyi
Não há como esquecer de que as nossas infantis e inocentes peripécias, se confundem com as de Nemecsek e seus amigos, que nos foram presenteados pelo extraordinário Ferenc Mölnár, em 1907. Ainda hoje, ressoam nos meus ouvidos os estridentes ruídos dos bondes que amorcegávamos indo do Ponto de Cem Réis até a Praça da Independência e o Colégio Pio X. Bons e belos tempos…

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  1. Anônimo6/7/22 20:22

    Beleza de crônica.

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  2. José Mário Espínola6/7/22 21:58

    Tivemos infância parecida com a do autor, o nosso "grund" era o pátio do hospital Santa Isabel. Lá, quem às vezes invadia era a Rádio Patrulha, chamada pelas freiras do santa Isabel, incomodadas sabe-se lá pelo que.
    Uma história comovente dentro de mais um belo texto de Barreto. Parabens!

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