— E, então, Seu Severino, o que o senhor acha? Vem chuva logo, ou não vem? Não era pergunta lançada à toa esta que Pedro fazia na r...

A morada dos trovões

chuva previsao relampago benzedeira supersticao
— E, então, Seu Severino, o que o senhor acha? Vem chuva logo, ou não vem?

Não era pergunta lançada à toa esta que Pedro fazia na roda de amigos àquele com idade para ser avô de qualquer deles e em cuja varanda estavam. Fazia dias que o trovão pipocava sem nenhuma serventia para os lados do poente. Trovão e relâmpago, pois não existe um sem o outro.

chuva previsao relampago benzedeira supersticao
Acilon Oliveira
O velho alisou as pontas do bigode, espichou-se na cadeira de lona e, em vez da resposta direta, decidiu questionar, um a um, aqueles moços. Pedro tinha o casamento dependente das safras de inverno.


O ar de satisfação naquelas caras já antecipava o anúncio que, aliás, viria melhor do que a encomenda: “Vai chover grosso antes que a semana termine”, respondeu, por fim, do seu trono de lona, o dono da casa.

chuva previsao relampago benzedeira supersticao
Acilon Oliveira
Não era de agora que Seu Severino tinha gente jovem a sua volta interessada nos humores do tempo. Nem era a primeira vez que respondia com perguntas a cada interlocutor. Assim o fazia desde a época da primeira cueca dos filhos. O propósito era o ensinamento. Gostava de compartilhar o que começou a aprender com os pais e avós tão logo largou, ele mesmo, os cueiros.

Antonio, concluinte de Agronomia e já inteirado da não previsão de chuva nos boletins meteorológicos, travou aposta com o amigo João, ali mesmo, diante de todos. Chover até poderia, mas não com a brevidade assim anunciada. Começou a se arrepender diante de outra pergunta: “Não reparou formiga
chuva previsao relampago benzedeira supersticao
Civali
levantando barreira de areia em volta do buraco para ali não entrar água?”.

Ouviu isso e o conselho: “Estude, aprenda, progrida, mas não cuide apenas dos ensinos do homem. Preste atenção, também, à ciência dos bichos. Eles estão no mundo há milênios antes de nós e, nesse tempo, desenvolveram sentidos distantes da nossa compreensão”.

Não era de todo ignorante do progresso científico e tecnológico aquele roceiro de 80 e poucos anos. Gostava de ler revista e ouvir as notícias do rádio e da tevê, aparelhos que chegaram à roça no advento dos postes e cabos elétricos. Acostumou-se, desde muito cedo, a falar com seus meninos sobre foguetes, planetas, velocidade do som e da luz. Não há maior do que a desta última, dizia aos filhos nos dias dos aguaceiros com raios no céu. E os desafiava a calcular a distância de cada trovão.

Com viagem a 300 mil quilômetros por segundo o fogo de qualquer relâmpago nos chega aos olhos, imediatamente, em tempo praticamente zerado. O som do trovão é muito mais lento: ele corre a cada segundo uns 340 metros. Assim, bastava contar, no compasso dos segundos, o tempo decorrido entre o clarão e cada ribombar daqueles: “Um, dois, três, quatro, cinco, seis” e “catabuuum”. No caso de seis segundos, bastava multiplicar 340 por seis e, pronto, tinha-se a distância daquele estouro. As crianças se divertiam e, ainda por cima, perdiam o medo das tempestades.


Agora, sou eu que lhes pergunto: vocês ainda têm filhos e filhas abaixo dos 15 anos? Têm netas e netos pequenos? A idade é importante porque, depois dos 15, eles e elas já não nos concedem atenção por inteiro. Começam a viver para a tribo que os adota e para os encantos de um mundo que não é o nosso e ao qual nunca pertenceremos. Aproveitem, então, a fase de ouro das convivências. E achem a morada dos trovões. As crianças vão adorar.

Devo contar que Seu Severino tinha em Dona Zefa sua alma gêmea, a metade da laranja. Quase da idade do marido, ela era benquista por aquele povo até mais do que ele. Afinal, dava-se ao ofício de rezadeira pelo qual nada cobrava nem recebia. Uma alma pura, uma “boca santa”, no dizer de testemunhas da força de suas rezas contra mau olhado, nervo torto, peitos abertos, espinhela caída e outros males comuns, naqueles ermos, aos desvalidos dos médicos e da medicina.

chuva previsao relampago benzedeira supersticao
CostaPP / Wikimedia
Os ramos da vassourinha de pinhão muito viçosos e bonitos saíam murchos daquelas sessões enquanto gente grande e pequena recuperava o fôlego, a cor, a esperança e o riso. A água espumava na garrafa usada para curar as enxaquecas mais agudas quando enrodilhada e posta na cabeça do doente. O cordão em volta do corpo, antes e depois, atestava a cura das espinhelas. E a cinza da última fogueira junina poderia completar o bom serviço. “Com dois te botaram, com três eu te tiro. Com as pessoas da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo” – feita assim por Dona Zefa a reza expulsava, em instantes, o mais renitente dos olhados. E, ao fim de tudo, um “muito obrigado” expresso de coração bastava àquela santa mulher.

Quem quiser descrer desses mistérios, descreia. Eu não desacredito. Acho, mesmo, que há gente desembarcada no mundo com o poder dessas curas e que, assim, cumpre missão delegada pelos Céus. Suponho que haja certos anjos por trás dessas pessoas. Os saquinhos de cinza, as garrafas d’água, os cordéis e os ramos da vassourinha de pinhão são operações diversionistas, a fim de que não os percebamos. Eles não gostam de se mostrar.

Ah, sim... Pedro casou-se com uma moreninha bonita depois de três meses daquela conversa na varanda de Seu Severino. As chuvas vieram com tudo. O milharal nunca havia botado tantas espigas, a fava e o feijão exageraram na fartura, as frutíferas pariram mangas, mamões, abacates, laranjas e limões em profusão, as hortaliças encheram os bancos da feira e o gado prosperou. Antonio obteve seu diploma de agrônomo com um olho no adubo e outro nas estrelas.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também