MONÓLOGO Pode ser meia a dor que te consome? Viver, apreender palavras, guardá-las no silêncio. O mormaço já est...

As mãos postas

 
 
 
MONÓLOGO
Pode ser meia a dor que te consome?
Viver, apreender palavras, guardá-las no silêncio. O mormaço já está distante e os grãos da areia não povoam mais a mesma praia. A mãe, um vazio sem nome, os passos trocados do pai. A memória se movimenta para trás das cortinas e o esquecimento ocupa o palco dos nomes. (A saudade é um engasgo estranho que não cede com água gelada.)
A VOGAL É PAR
A vogal é par, a consoante é impar – azulejos – na casamata do poema. Guardei as fitas do arco-íris para os cabelos das crianças. O bem é assim: cheio de luz, e a beleza, esse beijo indiferente numa esquina que se diz vida e que nada mais é que um laço apertado de pequenas crenças e grandes tragédias.
AS MÃOS POSTAS
Guardo a morte em minhas mãos impenetráveis (A vida é impura, é incerta e bela) E a venda em meus olhos é a minha mão exata e confusa, autômata A mesma mão posta de minha mãe A mesma mão com a chaga cicatrizada de Cristo que não permite que o segredo da luz se transforme em milagre A mesma cortina, o mesmo piche sobre a realidade dos cristais quebrados silenciando as falsas leituras dos prismas e seus presságios O portal para a loucura das cores que desfilam no oco da caverna escura e contam a história do mundo.
MELODIA
Se laço ou corda me fizeram refém de sua volta, vai melodia – esse estilhaço de eternidade – (nessa revolta interminável) retorna e canta o descompasso das horas mortas, do grande nada, espalha e avança na absurda tarde, varre a esperança respinga, amaine, amansa e aguarda, enlaça a musa a minha carne pois já me cansa passar ao largo da tempestade.
VARIAÇÕES SOBRE UMA PEDRA
Como se instalasse sobre a cabeça um nome de um anjo ─ necessariamente puro ─ e desse grilhão sobre as têmporas fecundasse a culpa E mesmo palmilhar os sonhos ─ por um sútil augúrio ─ se transformasse em indecisão e a desculpa para preferir a insônia E o peso, essa discórdia, essa falta de disciplina, o terço desfiado a esmo na comichão dos dedos sem paz, convulsos, na luta inglória (Como a pedra chega aos nossos pés?) Esse poder de nos abater, de nos tornar combalidos no tempo tardio do antes de sermos um nome e uma esperança no vazio A funda de Deus cravando a rocha que nos cabe em vida, essa maldita fome de vitória E o limo que floresce, delicado e célere, na expectativa de nosso primeiro passo.

Do livro XXI Sombras ■ Jorge Elias Neto
Editora Cousa, 2023 Pré-venda disponível em: https://www.editoracousa.com.br/produtos/xxi-sombras


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