“Cuidado com o vazio de uma vida ocupada demais”. Essa frase, cuja autoria desconheço, é um lembrete do quanto temos nos esforçado para...

Ocupado demais

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“Cuidado com o vazio de uma vida ocupada demais”. Essa frase, cuja autoria desconheço, é um lembrete do quanto temos nos esforçado para preencher nossos vazios com o pragmatismo sacal do cotidiano que está repleto de demandas, mas falta-lhe significado. Estamos ocupados demais ou culpados demais? Culpados de quê? Cada qual deve tentar responder...

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E. Dantès
Se não temos tempo para nada, e isso nos inclui, também nos exclui da possibilidade de nos enxergarmos — a nós mesmos e uns aos outros. Se na agenda não há reserva para nos olharmos nos olhos, estamos nos esquecendo de nós mesmos antes de a memória se esvair.

Nossa decrepitude está na perda do nosso poder de narração. Admiro pessoas que ainda hoje saibam contar histórias, sejam estas orais ou escritas. Lembro de meu avô, sentado na cadeira de balanço, entre pausas e silêncios, costurando histórias que davam sentido ao mundo. E a minha avó, mesmo com sua pouca escolaridade, tecendo não só tecidos, mas também histórias. Fico fascinado com quem tão bem relata que quase sempre reclamo pelo registro. Ah, “isso dá uma crônica”, “ah, você nunca pensou em escrever sobre isso”? E quando o que se conta é algo que nem mesmo o autor havia coragem de relevar para si?

Será que estamos perdendo o poder da narração porque estamos perdendo a capacidade de uma escuta atenta?

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Y. Saighani
Nosso discurso anda arrastando, enviesado pela reatividade, sai como grito pelo anseio de ser ouvido. Atravessados pela pressa, atropelamos as palavras e a dicção vira adicção. O vinho nas veias se entorna para encontrar os caminhos nos quais a palavra possa percorrer e atingir o âmago do conflito interior. Quem sabe a gente se embriague de presença, porque de solidão já estamos de ressaca.

Mia Couto — escritor moçambicano — disse que nunca tivemos tantas estradas e nos visitamos tão pouco. Moramos na mesma cidade, às vezes no mesmo bairro,
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Mia Couto, escritor e biólogo moçambicano ▪ Foto: Fronteiras do Pensamento, via Wikimedia.
mas nos limitamos (quando muito) a trocas de mensagens escritas e/ou a áudios que, por vezes, parecem-me conversas de walkie talkie que poderiam ser encerradas por “câmbio, desligo”.

Confesso. Ando cansado dessa hiperconectividade sem laço. Dessa necessidade de ter acesso ao outro e ao mesmo tempo não, porque nada substitui o contato presencial, o corpo a corpo, que nos possibilita o abraço. A pandemia mostrou isso. Não houve isolamento real, e para muitos não mudou tanto, por já viverem reclusos.

A vida não é uma maratona de notificações, reuniões e listas de tarefas. Não pode ser um café tomado às pressas, olhos vidrados em telas, como zumbis corcundas. Não é o corpo presente, mas a mente exaurida pelo peso do passado e o excesso de futuro.

Sei que todo mundo está “na luta”, “viver é muito perigoso” — como diria Guimarães Rosa —, mas não viver está sendo mais fácil? Ser uma pessoa ocupada demais virou sinônimo de status?
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U. Mont
Luxo mesmo é ter tempo para autocuidado, o que envolve ter disponibilidade para cultivar amizades, estar com a família, ler, estudar, namorar, escutar, de fato, uma música, sem precisar ver as horas. É ter tempo para curtir a rede na varanda e não no smarthphone.

Precisamos de gestos poéticos. Olhar para o céu, redescobrir o ar que bate em nossa face e percorre nossas narinas, a maciez dos nossos lençóis, a água que desce do chuveiro e o suor que escorre por nossos corpos. Escutar canto dos pássaros e se encantar com as metáforas subitamente inventadas pelas crianças. (Re)descobrir o conforto do silêncio, muito mais do que o suposto tédio.

Se você está ocupado demais, que seja por estar tomando conta do (seu) mundo – parafraseando Clarice Lispector. Esse mundo em que há tantos sonhos, sabores e saberes aguardando usufruto.
Texto publicado originalmente no jornal A União em 2/5/25.


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