Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços as...

Meu amigo Adler


Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços asfixiantes das casas. Daí o seu jeito flâner, a predileção pelos feriados nacionais, pelas festas das padroeiras, a exemplo das de Nossas Senhoras das Neves e da Luz, sobretudo esta última, guarabirense de boa cepa que ele o foi.

Suas palavras ressuscitavam os mortos, que readquiriam os movimentos, as cores, para encenarem o papel que lhes fora reservado cumprir
Estou a ver a sua pele queimada pelo sol, tão sob o céu ele andava, tão sentindo o céu ele andava, ao passo em que a alma das ruas o abastecia da convivência com a gente humilde, simples, igual a ele, versão de um São Francisco de Assis da classe média.

Já sexagenário, se submeteu ao vestibular do Curso de História da UEPB, conquistando o 1º lugar. Pena que tenha abandonado o curso, decepcionado, quem sabe, com o foco excessivo da história oficial na vida dos reis, rainhas, nobres, clero.

jader pimentel
Jáder Pimentel
Filho e irmão de duas lideranças tradicionais – João Pimentel e Jader Soares Pimentel –, Adler sempre votou obedecendo aos ditames de sua consciência. E o fazia sem alardes, sem radicalismos, em consonância com o homem manso, pacífico, que sempre foi durante os seus setenta e dois anos de vida, embora tenha morrido como nunca viveu: violentamente. E isso por conta de um motoqueiro assassino, celerado, que avançou o sinal para colhê-lo na faixa de pedestre. Sedado, resistiu apenas três dias quem gozava de excelente saúde, quem sempre privilegiou “o estar entre as miudezas (ou entre as pequenas grandezas) do universo”.

aida cury
Aida Cury
A sua memória jamais o traiu. Remontava a fatos de há trinta, quarenta, cinquenta anos, como se os estivesse vivendo no calor da hora. E citava as datas, os nomes das personagens principais e secundárias, os mínimos detalhes, armando, à nossa frente, o palco de uma peça que dirigia com engenho e arte. Nesses momentos, então, as suas palavras ressuscitavam os mortos, que readquiriam os movimentos, as cores, para encenarem o papel que lhes fora reservado cumprir. E vinham os relatos sobre o crime do Sacopã, sobre o caso Aída Cury, ou ainda a propósito dos assassinatos de Aluísio Franca e de Miguel Metri, aqui em João Pessoa. Depois, então, o grand finale: o confronto dos advogados no tribunal do júri, os recursos oratórios e cênicos de cada um deles, as tréplicas, as reações dos corpos de jurados, as sentenças, as condenações, as absolvições, tudo na ponta da língua, hoje silenciada para sempre.

Baixa, mansa, rouca, a sua voz adquiria contornos de quem estava constantemente conspirando. Mas, o que parecia conspiração, revelava apenas uma grande timidez. Tanto que usava o guarda-chuva mais para ocupar as mãos – que, quase sempre, não sabia onde botá-las – do que para se abrigar da chuva ou do sol. O meu amigo Adler Soares Pimentel sabia se defender das intempéries do mundo, tinha a sua própria e particular meteorologia. O céu era e foi o seu grande guarda-chuva, o céu em que ele agora entra sem pedir licença a São Pedro.


Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta

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  1. Curioso:li o relato ouvindo a sua voz, a mesma, densa e calma, com que declama seus poemas. O texto é tão suave. que o atropelamento me atropelou."Vi", sem nunca tê-lo visto, o Adler que tanto o marcou, apesar da inibição com que me visitou.

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