Um dos elementos mais fascinantes da literatura ficcional é a personagem. Quem não se lembra de figuras marcantes como Capitu, de Dom C...

As personagens e(m) nós

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Um dos elementos mais fascinantes da literatura ficcional é a personagem. Quem não se lembra de figuras marcantes como Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada; Fabiano, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, com sua luta bruta contra a miséria e a seca; a Gabriela, de Jorge Amado, com seu cheiro de cravo e canela,
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que se impõe com naturalidade e sensualidade à ordem patriarcal; ou Macabéa, de A hora da estrela, de Clarice Lispector, cuja ausência de atributos a transforma em presença simbólica da mulher invisível na sociedade? Essas figuras permanecem conosco como presenças quase palpáveis. Mas de onde elas vêm? Como é possível que escritores consigam criar personagens tão densas, tão humanas, tão inesquecíveis?

Penso que a personagem seja um dos elementos mais difíceis de elaborar na ficção literária. Talvez o mais difícil. Afinal, personagens não são apenas indivíduos inventados — são seres de linguagem. Nascem do verbo, mas não se limitam à palavra: precisam ser encarnadas no enredo, legitimadas pelo espaço que ocupam e pelas relações que estabelecem com outras figuras da narrativa. Não basta descrevê-las com precisão física ou atribuir-lhes sentimentos aleatórios. Elas precisam viver, respirar, tomar decisões, reagir, errar, calar, falar. Precisam ter densidade.

Para isso, o escritor se vale de recursos variados: ações, falas, pensamentos, gestos, hesitações. Uma personagem não se revela por completo; ela se insinua. O autor deixa pistas, e o leitor as decifra.
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À medida que a leitura avança, um rosto começa a se formar, e não apenas um rosto: uma consciência. A personagem nos espelha e nos inquieta. É por isso que as melhores personagens não são aquelas com os maiores feitos, mas as que nos obrigam a refletir sobre nós mesmos.

Sua psicologia é um traço essencial. Precisa ser verossímil, provocar reconhecimento. E, mais ainda, deve nos afetar. Uma personagem eficaz desperta empatia ou repulsa — nos envolve emocionalmente. É como se, de algum modo, ela tocasse aquilo que temos de mais íntimo. Seja por sua coragem ou por sua covardia, por seus desejos ou por sua renúncia. Exprimem sonhos, medo, contradições. São humanas demais para serem esquecidas, ainda que inventadas.

Mesmo quando carregadas de simbolismo ou arquétipos, elas se mostram universais. Hamlet, de Shakespeare, continua atual porque o dilema entre ser e não ser é eterno. Assim, cada personagem bem construída é um convite à introspecção, uma pergunta lançada ao leitor: e você, o que faria no lugar dela? As personagens se apoiam em uma rede de relações. Ninguém existe em isolamento completo — tampouco elas.
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O antagonista ajuda a definir o protagonista; o coadjuvante revela facetas ocultas do herói; o ambiente impõe limites ou possibilita expansões, por viverem em um ecossistema narrativo que lhes dá forma. Assim, mesmo aquelas que aparecem pouco podem ser decisivas – uma única fala é suficiente para marcar um destino. É curioso notar que, embora descritas minuciosamente, acabamos por idealizá-las — como fazemos com as pessoas reais. Lemos os traços dados pelo autor, mas completamos com os nossos. A imaginação do leitor é coautora dessa construção. É por isso que a Capitu que eu vejo não é exatamente a mesma que você vê. E, no fundo, isso é o mais instigante: a personagem não se fecha em si, mas se abre em múltiplas interpretações. Vive em camadas.

Creio que a criação de personagens é um exercício de escuta. O autor escuta vozes — algumas reais, outras interiores. Escuta silêncios, ruídos, respirações. Escuta o mundo. E, nesse movimento, recolhe fragmentos de humanidade que se tornam matéria-prima para sua criação. Toda boa personagem carrega algo do mundo e algo do autor. Nós nos reconhecemos em suas imperfeições.

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A personagem é mais do que um artifício narrativo: é uma presença. Uma alma de papel que nos atravessa e permanece. É por meio delas que entramos na ficção — e, paradoxalmente, é por meio delas que saímos de nós mesmos.

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