Viveu cabalísticos sessenta e dois anos: francês que chacoalhou a vida musical de seu país, Hector Berlioz nasceu no início do século XIX....

Fantástico Troiano


Viveu cabalísticos sessenta e dois anos: francês que chacoalhou a vida musical de seu país, Hector Berlioz nasceu no início do século XIX. Lembrando-me aqui de meu admirado professor Didier Jean Georges Guigue que, durante a graduação, apresentou-me seu conterrâneo de forma mais íntima e esmiuçada do que dele já conhecera até então. Um pesquisador do timbre, das instrumentações, seu livro sobre orquestração – tempos depois, revisado e ampliado por Richard Strauss, que com sua obra, muito aprendeu – é marco original até hoje.

Berlioz é desse tipo de Artista que é raríssimo, que não se conforma, não se ajeita passivamente ao seu tempo, e que lança sobre o mundo um irrequieto novo pensar.

Impelido por entusiasmada apresentação da "Eneida" feita pelo colega deste Ambiente de Leitura, o douto professor Milton Marques Júnior, trago à reflexão uma das mais grandiloquentes óperas já compostas em toda história: "Les Troyens" (Os Troianos), finalizada em 1859. Essa pompa musical, que nada tem de superficial ou espalhafato, é, na verdade, resultado de uma longa busca, um esmero abnegado e de uma maturidade artística incomparáveis. Berlioz vai no âmago de Virgílio, pondo em música uma emulação iconoclasta de sua era, e revive o projeto daquele épico de outrora, num desfecho magistral, de proporções inauditas até então. "Os Troianos" é ópera em cinco atos, dividida em duas grandes partes: a primeira trata da Tomada de Tróia, e a segunda dos Troianos em Cartago.

Publius Vergilius Maro inicia seu suntuoso projeto – que acabou não sendo concluso – dando a dimensão dessa grandiloquência poético-heróica que impressiona ao leitor-compositor já nos primeiros versos, trazendo o arquétipo sonoro-vocal:

Eu, que entoava na delgada avena
Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
Aos aldeãos; de Marte ora as horríveis
Armas canto, e o varão que, lá de Tróia
Prófugo, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vêm da sublimada Roma.

É bem certo que esse pendor ao grandioso, ao soberbo, ao gigantesco, não é somente da época em que nasceu Berlioz, e a cultura centro-europeia, naquele tempo, tradicional em manter das memórias antigas e clássicas, a chama dessa praxe. A arquitetura, sobretudo romana, é sublimada nas construções em geral, e as colunas desse pensar fixam-se em obras como a de Christoph Willibald Gluck, que soube musicar em gênero operístico, e em língua francesa também, esse glorioso passado de batalhas e vitórias a que se refere Virgílio e a que fascinou Berlioz. Mas, é indubitável que sua lavra compositiva é, desde cedo, manifesta nessa busca por uma sonoridade tão intensa e tão densa que constranja o ouvinte e o extasie para além dos cânones estabelecidos de forma e discurso, e alcance o sentir como categoria da fruição.

Desde as primeiras obras, Berlioz tratou de se envolver, ou, naturalmente, permitiu-se ser guiado por sua intuição, para temas relacionados aos arquétipos postos na obra virgiliana. Um exemplo é o ciclo de nove canções, Opus 2, "Mélodies irlandaises", ou, simplesmente, "Irlande" (trinta anos antes de Les Troyens); com, então, 26 anos, Berlioz tem nesse ciclo, referências como Helena (de Tróia), a guerra, a canção, e a elegia – podendo ser interpretável enquanto categoria, tanto musical, quanto poética.
E, já no seu Opus 5, "Grande messe des morts" (de 1838), um feliz mergulho no mundo do gênero do réquiem, e sua transcendência, como quem denega a própria morte, ou com ela, luta para viver e criar. Essa obra tem muita história, desde sua concepção, com uma descomunal demanda instrumental, a exemplo do "Dies Irae", com uma espantosa percussão de nada menos que dezesseis timbales, dois bombos orquestrais (grandes caixas-grave), e quatro gongos, tomando sobre si, a própria sonoridade da irresistível imagem do Juízo Final. E, também, da própria estreia, que só não foi um fiasco porque o próprio compositor tomou a batuta da mão do regente que não era páreo para obra – aliás, tal fato ainda permanece repetido até hoje, na relação entre regentes e compositores, que sempre carecem de verdadeiros maestros a interpretar-lhes...

O poeta alemão Heinrich Heine, e amigo de Berlioz, foi felicíssimo na tentativa de tradução descritiva dessa música extravagantemente epopeica e imagética:


“Um rouxinol colossal, uma cotovia do tamanho de uma águia, como se diz que existiu no mundo pré-histórico... Há para mim na música de Berlioz algo primitivo, senão antediluviano; faz-me pensar em espécies gigantescas de animais extintos, de mamutes, de impérios fabulosos com pecados lendários, de muitas impossibilidades empilhadas umas sobre as outras; essas linhagens mágicas nos lembram a Babilônia, os jardins suspensos de Semíramis, as maravilhas de Nínive, os ousados ​​monumentos de Mizraïm, como vemos nas pinturas do inglês Martin.”


Mas, como afirma o notável intérprete – esse sim, excelente MAESTRO! – John Wilton Nelson: “o público francês não entendeu Berlioz, de jeito algum; eles não entenderam seu pensamento!”. E Nelson, incansável estudioso de Berlioz, estreou sua carreira no Carnegie Hall, com nada menos que Les Troyens. A ópera tem como personagens de fundo em grande elenco: soldados gregos e troianos, cidadãos troianos e cartagineses, mulheres, crianças, capitães troianos, cortesãos, caçadores, fantasmas invisíveis, marinheiros, camponeses, náiades, faunos, sátiros e ninfas dos bosques. Essa diversidade é quase que uma antecipação visionária do que vivemos hoje com a multiplicidade indefinível de transnominações a partir da auto percepção de gênero em cada um. É como se nossa atualidade se transportasse para um convívio mitológico-epopeico, no qual seres imaginários e reais, mágicos e humanos convivessem, conflitassem-se e contassem essa saga em música. Por isso mesmo, a obra verdadeira de Arte é atemporal, e concede contato com seu mundo, transversal ao tempo, no que ela nos referencia em cada época.


O eminente crítico musical Gustav Kobbé, em seu The Complete Opera Book, editado por George Lascelles, sétimo Conde de Harewood, não poderia deixar de mencionar essa grandiosa obra: “Les Troyens é a maior ópera de Berlioz, e sob muitos aspectos sua maior realização. Nela, conseguiu o compositor unir sua busca do classicismo de um Gluck, em estrutura e forma, a sua própria paixão pelo que é expressivo e vivo”. E, falando em paixão, é o compositor que se define: “O amor e a Música são as duas asas da alma” e “eu tenho uma Paixão pela paixão!”. Calculando a duração total dessa gigantesca ópera, Berlioz chega a quantificar cada ato e, prevendo durações de quinze minutos nos quatro intervalos, conclui uma noitada de exatas quatro horas e vinte e seis minutos – proporção similar a primeira versão de Rienzi de Wagner. E o Conde de Harewood acrescenta a citação do respeitável musicólogo norte-americano Donald Jay Grout:


“Les Troyens é a ópera francesa mais importante do século XIX, a obra-prima de um dos maiores compositores franceses, o pendant latino da Tetralogia germânica de Wagner; seu estranho destino só pode ser comparado, na história da música, ao centenário esquecimento em que foi deixada a Paixão segundo São Mateus de Bach. Num país capaz de apreciar seus próprios monumentos culturais, Les Troyens deveria ser montada regularmente às custas do Estado, até que os cantores, regentes e o público se dessem plenamente conta de sua grandeza. De todas as obras da escola francesa da grand opéra, é esta a mais digna de ser assim preservada.”


O esforço literário de Berlioz foi às últimas consequências na forja do libreto. Como lembra muito bem o erudito Otto Maria Carpeaux, Berlioz descendia de família relativamente abastada e tradicional, com alta instrução. Escrevera críticas para o Journal de Débats, e lá foi considerado um cronista respeitável, memorialista, e detentor de alta técnica de redação, com rico vocabulário. Sua música é, majoritariamente, estimulada por impressões literárias. Então, Les Troyens surge nessa mente irreligiosa, e devotada a Virgílio e Shakespeare, reunidos em elaboração textual e narrativa. É, por exemplo, de O Mercador de Veneza, donde provém os versos do grande duo de amor entre Dido e Enéas no Ato IV. O recorte temporal é marcado pelos já nove anos – e de novo a referência cabalística... – de início da guerra em Tróia; Heitor, Aquiles e Pátroclos já pereceram em combate, e o ‘presente de grego’ é o símbolo inicial marcante como arquétipo de traição e ingenuidade.


Berlioz toma como referência inequívoca, a avena virgiliana (espécie de aulo campestre) no ritmo repetido da entrada da primeira cena, representado em flautas e flautins, e o canto do aulo pelos oboés que, em seguida é entoado pelo coro em interjeições poéticas. Este é só um dos esforços composicionais para imprimir na partitura, símbolos, sinais abstratos, mística e magia de uma poética intraduzível do âmago de seu compositor.

Berlioz morreu sem conseguir ver sua Grand ‘ópera levada ao palco na íntegra. As dificuldades inerentes da concepção e produção, que inclui também corpo de baile, e a própria música, muito além de seus conterrâneos, levaram-no a um desfecho de vida melancólico e frustrante: não teve discípulos diretos em vida, e chegou a deixar escrito:

“Vou fazer 61 anos; esperanças passadas, ilusões passadas, passados os pensamentos elevados e as concepções sublimes. O meu filho está quase sempre longe de mim. Estou só. O meu desprezo pela insensatez e maldade da humanidade, o meu ódio pela sua atroz crueldade, nunca foram tão intensos. E digo de hora em hora para a Morte: 'Quando você quiser'. Por que se demora ela?”

Cabe a nós outros mergulhar nessas fossas abissais que ele nos lega: meditar sobre o mister criativo hoje; pois, se essa originalíssima Arte, não muito distante de nós, e se esse Mestre, autêntico, não obtiveram reconhecimento merecido; é, destarte, como um sacerdócio o compor, o fazer Arte, posto que tal manifestação não é imediata, antes, mediato devir. Deixo aqui a indicação da palestra breve (em inglês) do Maestro Antonio Pappano para o The Royal Opera House e recomendo a performance de 2009, sob a batuta do estimado Maestro russo Valery Gergiev, aos que se encorajarem em assisti-la na íntegra.


Sam Cavalcanti é mestre em música, compositor, crítico e escritor

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  1. Parabéns Samuel pelo seu bom gosto. Adoro e meu pai recém falecido adorava Hector Berlioz quanto a Les Troyens eu e meu pai nós a conhecemos, temos em DVD. A ópera preferida do meu pai era Rienzi de Wagner, que nunca entendeu dê-la ser proibida só entendeu quando eu consegui para ele duas montagens dela.
    Quanto ao magnifico livro sobre música de Otto Maria Carpeaux eu li há mais de 20 anos, que me serviu de guia, depois fui trilhar outros caminhos com meus ouvidos. Parabéns por seu belo e estudado comentário, que servirá de guia para que for conhece-la.

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