Quando a Magnum Photos publicou esta imagem, em 2016, no dia em que Robert Redford completou 80 anos, a reação foi raivosa. “Não, Redford...

A velhice

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Quando a Magnum Photos publicou esta imagem, em 2016, no dia em que Robert Redford completou 80 anos, a reação foi raivosa. “Não, Redford merece outra coisa. Ele não está a serviço da arte do fotógrafo, mas o contrário”, disse um comentarista. Outro emendou:
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Magnum Photos
“O que é isso? Isso não é um retrato. É um desastre” e um terceiro sacramentou: “Foto horrível!”. Postaram, então, algumas fotos de um jovem e sensual Redford, sem rugas, numa postura que transmitia força e vigor. Alguém lamentou, por fim: “Ele era tão bonito…” Um homem pediu respeito, poucos elogiaram o retrato.

Não entenderam. A fotografia é um poema. Traduz numa imagem o conjunto de uma vida inteira, com sulcos de lágrimas fundas, com marcas de risos rasgando a pele. Ela fala de plenitude, de intensidade, do longo caminho que nos faz humanos. A foto de Christopher Anderson mostra um homem cuja pele parece um pergaminho, um rosto de terra ressequida, preenchida com os sinais do tempo – minúsculas negras manchas, rugas profundas. É um tratado de filosofia, que nos diz muito sobre a passagem dos anos, a transitoriedade de todas as coisas, os valores que importam, a velhice que nos iguala ao reunir na massa de brancos cabelos e peles flácidas os deuses e os anônimos. Dela só escaparão os que morrerem cedo – cabe lembrar.

Gosto desta foto. Diante dos olhos vibrantes, pergunto-me se o rosto enrugado se faz máscara do homem vigoroso que ainda vive nele. A mão pousada no pescoço deixa entrever, na camisa aberta, os pelos do peito. O que estaria dizendo quando fez aquele gesto?

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Diante do retrato, reverencio o ciclo perfeito que aos poucos se fecha, o ritmo natural de toda vida. Minha memória instantaneamente me traz Platão, no livro I de "A República", narrando o diálogo entre Sócrates e o idoso Céfalo. “Eu me comprazo bastante, ó Céfalo, em conversar com pessoas de idade avançada. Sempre achei que me podem dizer como é o caminho por eles percorrido e que nós também talvez tenhamos de vencer; irregular e penoso, ou fácil e cômodo de percorrer?“.

Céfalo conta a Sócrates sobre seus amigos idosos, que não paravam de se lamentar e de lastimar a perda das alegrias da juventude, relembrando os prazeres de cama e mesa, queixando-se dos parentes desrespeitosos e das mazelas do corpo. Céfalo acha que essa forma de ver as coisas não tem como causa a velhice, pois, se assim fosse, tal estado de espírito seria comum a todos os homens. Ele lembra de uma ocasião em que estava com o poeta Sófocles quando este foi indagado se ainda se unia a mulheres e desfrutava dos prazeres do amor. Conta Céfalo que respondeu o poeta:
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“Cala-te, amigo! Estou mais do que satisfeito por me haver libertado disso, como quem conseguiu escapar de um senhor despótico e violento“. Para Céfalo, as palavras soaram muito belas e, com esse pensamento gravado na alma, ele concluiu: “De fato, a velhice traz consigo paz e liberdade. Quando as paixões afrouxam o seu domínio e deixam de se fazer sentir, confirma-se plenamente o dito de Sófocles: livramo-nos de uma turba de tiranos enfurecidos. Sobre isso e as queixas relativas aos familiares, a causa é uma só: a velhice não tem culpa, Sócrates, mas o temperamento de cada um. Para quem sempre viveu com ordem e simplicidade, a velhice é um fardo suportável. De outro modo, Sócrates, tanto a velhice como a mocidade são penosas“.

Resumo para o Enem, crianças: o homem capaz de enxergar a beleza da vida, traduzida em sua completude que inclui velhice e morte, está pronto para a filosofia.

Mas – sempre há um mas no caminho – poucos de nós são afeitos a visões filosóficas e a velhice é daqueles assuntos que estão longe de discussões pacificadas. Da opinião serena de Sófocles à amargura de Leopardi ("a velhice é o pior dos males, pois priva o homem dos prazeres, mas deixa-lhe o apetite"), não há unanimidade. Inclino-me a concordar com o tragediógrafo grego e lembro que Leopardi era gênio, mas morreu jovem (hoje diriam que não tem lugar de fala).

Haverá quem leia este texto resmungando que é uma visão idealizada, que esqueci as mazelas que chegam com a idade. Não é o caso. Estou consciente da agonia que é ver o corpo mostrar a fadiga do tempo, do rosto perder o viço,
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de sentir a memória e a vista falhando e os passos se tornarem mais lentos. É que perante a impossibilidade de parar o tempo, penso que só existem dois caminhos: o dos que mergulham com ânimo filosófico nas mudanças físicas e mentais do processo de envelhecer; e os que desejam tornar menos evidentes as marcas do tempo. Ambos estão corretos, dentro da grande complexidade que é o ser humano.

Mais uma vez, cabe respeitar o desejo individual, uma vez que não há fórmula de felicidade que funcione para toda a humanidade. A Medicina avançou o suficiente para oferecer correção de imperfeições. Aproveitá-las com sabedoria é uma arte. Cuidar-se faz parte dos rituais de autoamor da maioria dos humanos. Produz uma sensação de bem-estar consigo próprio, uma felicidade muito particular.

Nesta discussão, se o que cada um decide fazer no próprio corpo é questão de decisão pessoal a ser acatada, o mesmo não acontece quando se trata das reações cruéis ao envelhecimento alheio – estas, sim, merecedoras de repúdio.

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Nos sites de notícias e nas redes sociais, é comum o preconceito, como aconteceu com a foto de Redford. Celebridades idosas ou na meia idade costumam receber comentários depreciativos, ataques e ironias. Costuma-se atacá-las por sua opinião usando a aparência física como arma. É uma covardia.

Pior ainda é quando se associa a idade à incapacidade intelectual. Não é raro ver filhos, netos e até desconhecidos tratando idosos perfeitamente lúcidos como se fossem crianças e dando-lhes lições sobre obviedades. Infantilizar os pais e avós, tratá-los como incapazes, é cada vez mais comum. Mas este é assunto para outro texto.

Por enquanto, para responder aos que se imaginam bebendo na fonte da eterna juventude, vou me valer da língua afiada de Oscar Wilde, autor da mais perfeita frase sobre a arrogância juvenil: “Não sou jovem o suficiente para saber todas as coisas”.

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  1. Li o seu brilhante texto, pausando e pensando na situação de Alain Delon, ídolo da minha geração, em tempos cada vez mais distantes

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  2. Vi uma foto minha, também, quando fiz 80 anos, em 2021. Não foi fácil.

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