Alguns espíritos mais desavisados estariam pensando que a pauta de hoje seria algo relativo à minha introdução nas veredas do dito pec...

Minha primeira vez

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Alguns espíritos mais desavisados estariam pensando que a pauta de hoje seria algo relativo à minha introdução nas veredas do dito pecado original. Nada disso. Quem assim está fazendo uso dessas conjecturas pode ir tirando o cavalinho da chuva. O tema é bem menos luxurioso, nem por isso menos intrigante e digno de registro. Dada sua importância nos arquivos de minha memória é que estou aqui ocupando espaço neste poderoso rotativo. O assunto está voltado ao dia em que pela primeira vez, como aluno, pisei em uma sala de aula.

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A data? Como esquecer? O verão estava já querendo se despedir naquele 3 de março, uma segunda-feira daquele ano marcante de 1958. Acordei todo pimpão, cheio de expectativas, porque ir para escola pela primeira vez, começar o então dito ensino primário, era um rito de passagem e assim foi para mim.

Não havia a pré-escola como a concebemos hoje, onde se inicia o processo de letramento. Esta etapa do aprendizado ainda era uma receita de mezinha. O que antecedia à primeira série do ensino primário era o “jardim da infância”, que raríssimas escolas públicas disponibilizavam. Ali, as crianças eram sociabilizadas e tomavam contato com o lápis de cor e as massinhas de modelagem.

Não frequentei o jardim da infância. Fui alfabetizado em casa tendo como professora, minha mãe e a supervisão de um chinelo colocado sobre a escrivaninha a guisa de bedel. Dona Nalva, minha mãe, era como se diz, dura na queda. Nos meses que antecederam aquele 3 março pererequei como um danado sobre as páginas da Cartilha Sodré e ali fui me tornando íntimo do alfabeto e de algumas de suas mágicas combinações. Ah, quantos piparotes no cocuruto quando descuidava da caligrafia e não acertava a tabuada. Não me esqueci que que o sete vezes oito fugia da minha memória e aí a bronca era brava.

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Então meus amigos, minhas amigas, aquele meu despertar nos últimos dias de estio, foi o de um meninote que iria enfrentar o primeiro dos muitos desafios que a vida iria lhe apresentar. Estava inaugurando aquela etapa da vida já sabendo e ler, escrever, e fazer as contas. Não errava mais quanto era sete vezes oito.

Na véspera, meu tio Orlando, pedagogo jovem, mas já de vasta clínica, estivera conosco naquele domingo. Trouxera-me de presente uma pasta de couro, com duas divisões e com chaves como que estas fossem capazes de trancafiar meus primeiros segredos. Fiquei um tempão abrindo e fechando aquela maleta, só para sentir cheiro de “novo”, como até hoje faço quando adquiro um livro. Gosto ainda de sentir cheiro de “novo”. Saí de casa todo garboso, de mãos dadas com Dona Nalva. Óleo Glostora no cabelo, camisa branca de tricoline, calça azul de casemira, sapato Vulcabrás devidamente engraxado e lustrado na véspera.
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Alguém que se propôs a ler estes rabiscos já teve um sapato que chupava as meias? Isso mesmo, você vai andando e as meias vão se escafedendo a partir do calcanhar. Um horror! Pois assim eram os meus que calcei para ir à escola.

Naquela pasta, presente do meu tio, estavam a já tão palmilhada Cartilha Sodré, um caderno, na capa deste a figura de um grupo de escoteiros empunhando o pavilhão nacional, um estojo de madeira com tampa marcada pelos dizeres: “O estudo é a luz da vida”. Dentro dele borracha Pelicano, um lápis John Faber número dois e um apontador. Fui deixado na porta de minha sala de aula e recebido pelas mãos e pelo sorriso de Dona Emília.

Podemos esquecer da primeira namorada, mas da minha primeira professora eu não esqueci. Naquele instante minha mãe fez-me sua última recomendação: “Olha aqui rapaz, se eu receber reclamações, vamos ter uma conversa em casa. Obedeça sua professora”. Nem um abraço, nem um beijo. Mas eu sabia muito bem o que significava a tal de “conversa em casa”.

A professora, começou na lousa pela nossa primeira letra, o “a”. Ela escrevia no quadro, eu escrevia no caderno, ela apagava o quadro eu apagava o caderno. Não era para obedecer a professora? Estranhei um caderno com tantas folhas...

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A tragédia se consumou, quando a sirene tocou e dona Emília explicou o significado daquele alarido todo: “Este sinal quer dizer que a aula de hoje acabou. Podem pegar o lápis e o caderno e ir para casa”. Obedeci. Comigo só meu lápis, meu caderno e já fui pegando o beco. Imaginem a recepção que tive ao chegar. Meu pai me levou até a escola e tivemos tempo de recuperar o perdido. No caminho de ida e de volta tivemos a tal conversa. um eufemismo que o leitor entende. Quando chegamos, ainda o escutei comentando com minha mãe: “E essa praga ainda disse há pouco que quer ser escritor quando crescer. Pode?”

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