A utilização excessiva de procedimentos tecnológicos, vem cada vez mais, afastando o médico da cabeceira do doente, fazendo com que a relação médico-paciente – tão importante e valorizada no passado, – seja substituída pela solicitação de exames complementares, cada vez mais sofisticados, em detrimento da história clínica e do exame físico. A mão que sentia, percutia, e o ouvido que escutava, foram substituídos por visores “precisos”. Se por um lado, o desenvolvimento tecnológico trouxe benefícios inquestionáveis, por outro, o médico foi ficando cada vez mais afastado do enfermo, como ser humano (Décourt, 1995).
Em que pese, todo o avanço tecnológico, obtido pela Cardiologia, nos últimos anos, alguns profissionais têm-se mostrado insatisfeitos, com os rumos que a Medicina vem tomando. Insatisfação esta também visível por expressiva parcela dos próprios pacientes.
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A opulência tecnológica, de alguns centros, aliada ao seu poder de marketing e peso econômico-financeiro, "ditam as normas”, transformando o paciente em simples objeto para atender aos interesses de poderosas indústrias “da doença” (Décourt, 1995).
Com a perda da perspectiva humana na medicina, passou-se a considerar a doença, como um desarranjo mecânico de órgão a serem consertados, estabelecendo-se assim um dualismo MENTE-CORPO, e transformando a medicina numa atividade voltada exclusivamente para o corpo, em que o doente é visto como uma máquina composta por peças funcionando mal. Assim sendo, o médico transforma-se em um mero mecânico de manutenção. Isto caracteriza a visão mecanicista da medicina atual, na qual, o olhar do médico se concentra na doença, não no doente.
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É importante ressaltar, mais uma vez, que não estamos defendendo a volta do médico munido apenas do estetoscópio como único recurso tecnológico, mas sim analisando criticamente o uso excessivo da tecnologia na medicina, em particular, na cardiologia. Há profissionais que têm um verdadeiro encantamento por exames sofisticados – crendo que a sua utilização produza uma medicina à prova de erros, esquecendo-se de que esses métodos criam uma falsa segurança, quando utilizados como fontes isoladas de informação.
Essa parafernália eletrônica – quando usada sem nenhum critério – resulta apenas no aumento do custo de assistência médica, sem nenhum benefício real para o paciente (Luz, H 1995).
Jan Steen
A relação do doente com a doença, não se estabelece de uma forma fixa, uma vez que é extremamente variável, tanto de doente para doente, como também no mesmo doente, ela pode mudar inúmeras vezes durante a evolução, o que exige, portanto, do clínico uma postura dinâmica diante de cada caso.
A consulta não significa apenas o desejo de acabar com a doença orgânica, mas também a pretensão de eliminar o temor escondido e a angústia muitas vezes inconfessada. O paciente deseja ser tratado como uma pessoa, e não como um caso, ou um número de estatística. Em resumo, pede para ser alguém, no mundo impessoal da medicina. Não encontrando a atenção desejada, pode trazer-lhe dor moral, bem como a sensação de abandono e frustração, acarretando, assim, grandes dificuldades no seu manuseio clínico. Salienta-se, então, a importância da aliança terapêutica na consulta, para o desenvolvimento do tratamento (Perestrello, 1996).
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Vale ressaltar que o coração é foco de queixas de fundo emocional, não só por causa da resposta real ao estresse psicológico, como também por sua importância simbólica. Órgão do ser humano mais carregado de simbologia – templo das emoções – o coração figura como centro da vida e da morte, adquirindo o poder de transformar o comportamento das pessoas. Em virtude das fantasias criadas por esse simbolismo, e pelas alterações psicológicas causadas pela própria doença, torna-se necessária uma abordagem que vá além do coração orgânico.
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Outro aspecto, a considerar é a progressiva perda de caráter liberal da profissão. O médico, para sobreviver, muitas vezes é obrigado a assumir vários empregos por uma irrisória remuneração de convênios ou de algum órgão público, levando-o a atender um grande número de pessoas num pequeno espaço de tempo, o que tem dificultado ainda mais uma prática médica humanizada.
Além disso, o não atendimento sempre pelo mesmo médico – muito comum nos ambulatórios – impede a construção de um bom vínculo médico-paciente. Por outro lado, os sistemas de remuneração são também responsáveis por esta distorção da prática médica, em que os serviços técnicos são supervalorizados em detrimento da consulta mal remunerada, o que desestimula cada vez mais o exercício da Clínica de uma forma geral.
Jan Steen
É lamentável – mas verdadeiro – que, mesmo admitindo o valor de uma abordagem psicossomática, uma boa parte dos cardiologistas, no seu dia-a-dia, continue sendo composta de grandes organicistas, desconsiderando a influência dos aspectos psicoemocionais na gênese ou como consequência das doenças cardiovasculares.
Ao nosso ver, a prática de uma boa medicina compreende três componentes essenciais, sem os quais a assistência será fragmentada: bom nível de conhecimento médico, disponibilidade tecnológica, e capacidade de construir uma relação médico-paciente empática. Vale ressaltar que o resgate da relação médico-paciente apresenta vantagens para ambas as partes: de um lado, a adesão ao tratamento tende a melhorar, propiciando ao paciente uma reabilitação mais rápida e seu reconhecimento ao médico, com consequente realização deste como profissional.
Aprofundar uma reflexão sobre a complexidade do exercício da cardiologia neste terceiro milênio, implica repensar a relação médico-paciente através de duas perspectivas: uma ideológica, e outra interpessoal, para reafirmar que a Cardiologia não pode (e não deve ) perder seu coração.