Para os apaixonados pela obra de Edgar Allan Poe, recomendo “A Queda da Casa de Usher”, na Netflix. Não é uma adaptação direta do c...

Atmosfera misteriosa feita de luzes e sombras

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Para os apaixonados pela obra de Edgar Allan Poe, recomendo “A Queda da Casa de Usher”, na Netflix.

Não é uma adaptação direta do célebre conto homônimo de Poe, mas é ousada e engenhosa o suficiente para usá-lo como espinha dorsal a fim de explorar um tema contemporâneo – a pilha de cadáveres vítimas de opioides vendidos pela indústria farmacêutica.

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Netflix / Div.
Os escândalos da big farma (registrados em séries como “Dopesick” e “Painkiller”) são ficcionalizados na trama que gira em torno dos Ushers, uma família rica, disfuncional, gananciosa e calculista. Não é preciso muito esforço para associá-la à da farmacêutica Sackler, da vida real. O clã narcisista e amoral é liderado por Roderick Usher (Bruce Greenwood) e sua irmã Madeline (Mary McDonnell). Juntos eles construíram, à base de crimes, uma empresa multibilionária de analgésicos que viciou milhões de pacientes e causou incontáveis mortes.

A série inicia com o patriarca convidando o promotor Auguste Dupin (Carl Lumbly) para um encontro em sua arruinada casa de infância, a fim de narrar a trajetória violenta e as mortes recentes de todos os seus filhos.

Particularmente, eu dispensaria o exagerado aparato de sangue e entranhas e os sustos típicos de filmes de terror, mas é o caminho do diretor Mike Flanagan. O ponto fraco indiscutível é o discurso sócio-político desnecessário e professoral em alguns momentos. Mas tem Poe, minha gente. E se torna particularmente prazeroso brincar de caça ao tesouro e identificar as dezenas de referências à obra do poeta norte-americano.

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Netflix / Div.
Embora “A Queda da Casa de Usher” se distancie da história original, cada episódio – títulos, nome dos personagens, objetos de cenário (conhaque, o busto de Pallas Athena), trechos do roteiro – está entrelaçado com poemas, outros contos, episódios biográficos e até o único romance de Edgar Allan Poe. “O Corvo”, “O Coração Revelador”, “O Poço e o Pêndulo”, “A Máscara da Morte Vermelha”, “O Gato Preto”, “Berenice”, “Os Assassinatos na Rua Morgue”, “Annabel Lee” e “A narrativa de Arthur Gordon Pym” estão presentes. Trechos inteiros de Poe visitam os lábios dos atores. Até mesmo o mais visceral inimigo literário do escritor, Rufus Griswold, dá nome a um dos vilões da trama. Os que conhecem o mais famoso poema de Poe, “O Corvo”(The Raven), identificarão a proveniência de Lenore, a neta de Roderick, assim como a de Verna (Carla Gugino), o fascinante personagem que comanda a trama.


Os fãs de terror mais clássico e alguns críticos poderão torcer os narizinhos lembrando das grandes adaptações de Poe na década de 1960. Eu prefiro me fixar na homenagem ao escritor, na criatividade da proposta, nos bons momentos satíricos e na atmosfera misteriosa feita de luzes e sombras na qual ecoa a narrativa gótica de Poe a se derramar sobre temas como inconsciente, medo, ética, ambição, loucura, sexo e, claro, morte.

No fim das contas, sai-se com uma pequena lição no bolso: a capacidade de corrosão moral do ser humano supera qualquer horror que a imaginação de um artista venha a criar.

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