E quando passa a correnteza que transborda, uma consciência permanece na margem silenciosa da memória; Imagens e pensamentos preciosos que não podem e nem devem ser destruídos.
William Wordsworth
William Wordsworth
O que dizem os teus mortos? Os meus dizem coisas extraordinárias. Narram contos finos como bolhas de sabão, deliram ao rememorar grandiosos feitos, embolam-se em mesquinharias, elevam risos e curvam a cabeça diante das tragédias. Sussurram-me ao pé do ouvido que, no fim de tudo, restam apenas as histórias, que subvertem a morte e atravessam os milênios transmitindo o que agitou as dobras de um tempo antigo.
S. Brogan, CC0
Os gregos dos tempos homéricos acreditavam que todos os mortos iam para o Hades, independentemente de suas ações boas ou más. Por isso Ulisses encontra ali a própria mãe, os heróis da guerra de Troia, rainhas lendárias, amigos, inimigos e o tolo companheiro que acabara de morrer por causa de um descuido. Todos têm algo a dizer.
O que busca Ulisses no mundo dos mortos? Preparar-se para o futuro e ouvir as histórias do passado. Por breves instantes, enquanto suas vidas são narradas, vivem de novo. Repetidas pelos poetas, gravadas nos livros, suas experiências venceram os séculos e fizeram chegar até nós as lições que aprenderam.
S. Brogan, CC0
Meus amados não estão nos túmulos enfeitados de grinaldas pálidas e flores que logo murcharão. Também não estão nas cinzas espalhadas pelo ar. Não se impressionam
S. Brogan, CC0
Minha oração permanente é honrar-lhes a memória contando fragmentos das suas vidas, que de simples e banais têm apenas a aparência.
Dia haverá em que, já nos disse Fernando Pessoa, todos estaremos mortos e a natureza seguirá sem alterações, indiferente à nossa ausência. Não há garantia que as gerações futuras se lembrarão de algo. A não ser que esteja gravado na matéria imperecível da grande arte.
Mas, você há de perguntar, para que contar histórias? Certamente não para tornar alguém famoso. Fama – aprende-se com Aquiles no Hades – é tolice e de nada vale quando se está morto. O que se conta sobre os mortos serve para conectar os homens do passado aos do futuro.
Histórias dão significado à experiência humana. Indicam que todos partilhamos medos, agonias e sonhos. Ouvimos hoje as vozes de homens que viveram há milhares de anos e não nos sentimos mais sós.
S. Brogan, CC0
Uma vida, qualquer vida, é capaz de inspirar um romance – mesmo que o personagem principal seja alguém obscuro ou cuja experiência trágica servirá de reflexão e aprendizado para os que ainda vão nascer.
Ao narrar algo, o legado dos que viveram antes continuará a desfiar seus pensamentos, a embalar as noites e a preencher os dias com o já vivido. A trilha dos antepassados pode nos inspirar a viver plenamente, experimentando tudo em profundidade: alegrias, perdas, luto e fracasso. Podem nos reerguer, aconselhar e inspirar, indicar que há caminhos possíveis quando a angústia espalhar seu manto de sombras sobre nós, advertir sobre os perigos da jornada. Sabedoria ou tolice, maldade ou idealismo — tudo estará posto à mesa e servido.
No fim de tudo, repito, importa apenas a história de cada um. Se alguém a contar, estará cumprida a profecia dos versos de Shakespeare: enquanto a humanidade puder respirar e ver, os cantos dos poetas nos tornarão imortais — um dia de verão, cujo frescor jamais se extingue.